No início dos anos 1970, uma pesquisa realizada pelo historiador J. Michael Turner no Rio de Janeiro, com universitários negros, principalmente das camadas médias, apontou que vários deles se identificavam com normas culturais brancas, evitando manifestações de ascendência africana por associá-las à pobreza. Parte deles considerava símbolos corporais e vestimentários de orgulho negro como penteados estilo afro, dashikis e turbantes pouco atraentes e até mesmo humilhantes (DUNN, 2019). A desvalorização de materialidades associadas à cultura africana está ligada, possivelmente, à hierarquização entre culturas compreendidas como “superiores” e “inferiores” – visão imposta no Brasil por colonizadores europeus, para os quais a diferença foi concebida como deficiência, desacreditando a alteridade (RETANA, 2009).
Neste sentido, a cultura africana foi relacionada a algo “primitivo”, visto que a África foi associada historicamente, por meio de discursos eurocêntricos, a um lugar supostamente carente de tecnologia (SANTOS, 2017). Nesta perspectiva, teóricos de moda como John Flügel, psicanalista britânico do século XX, moldaram a ideia de que “raças negras” usavam trajes “primitivos”, uma vez que possuíam uma “forma relativamente simples de cultura”. Ou seja, a suposta inferioridade vestimentária dos povos africanos estava articulada à classificação dos mesmos enquanto seres racionalmente inferiores. Sendo assim, o processo de escravatura e a colonização europeia e apagaram as complexidades materiais, afetivas e simbólicas das roupas africanas apelando para a tese de selvageria, as relacionando a uma fase da história humana muito anterior a dos colonizadores.
Para vários estudantes que negaram uma aparência ligada à afirmação da negritude, o país estava em grande parte livre do racismo, apesar de ser raro não-brancos ingressarem nas universidades. A maioria deles entendia que as discriminações eram motivadas apenas por questões de classe e não de raça/etnia. Com certo “orgulho nacionalista”, eles comparavam o Brasil favoravelmente em relação aos Estados Unidos, com sua herança de segregação racial formalmente institucionalizada. Estas opiniões, vinculadas à “democracia racial”, refletiam a visão dominante das relações raciais no país promovidas pelo próprio governo militar como também por parte da mídia.
Mas, em 1976, quando o historiador J. Michael Turner retornou à capital carioca, observou que havia ocorrido uma mudança dramática de atitudes, crenças e modos de autorrepresentação entre os estudantes negros, inclusive aqueles com peles mais claras. O pesquisador notou que rapazes e moças usavam penteados black, falavam sobre consciência negra, denunciavam o mito da democracia racial e se solidarizavam com as lutas de libertação de negros nas mais variadas partes do mundo (DUNN, 2019).
O despertar da consciência racial e a leitura crítica das relações raciais no país, que ganharam espessura em meados dos anos 1970 conforme Frei David (2007), estão articuladas, em parte, ao movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, ao movimento black is beautiful e ao movimento Black Rio. De acordo com membros do Partido dos Panteras Negras (1966-1982) foram as pessoas nas ruas que inventaram a ideia do “black is beautiful”, por meio do uso de penteados afros e batas dashikis, desacatando ideais de beleza eurocentrados.
Contudo, foram os Panteras Negras que chamaram a atenção da mídia local e internacional, por meio de um modo particular e coletivo de andar, falar e se vestir, sendo este marcado pelo enaltecimento da cor preta, presente em peças de roupas como casacos de couro, blusas gola rolê e boinas. Inicialmente inspirado pela funk music estadunidense, o movimento Black Rio se constituiu a partir de bailes blacks, nos quais por meio de várias expressões culturais – soul music, moda e projeção de filmes e slides (sobretudo filmes do gênero Blaxplotation como Shaft e imagens do festival Wattsax, contrapartida negra ao sucesso de Woodstock) -, garotos e garotas construíram novas identidades coletivas pautadas na afirmação racial. A respeito do assunto, a atriz Zezé Motta diz ser grata aos blacks, “porque, em todo o processo de conscientização do negro na sociedade [brasileira], foi o Movimento Black Rio que nos trouxe um resultado mais rápido, e com muita força, daí a grande importância dessa manifestação” (PEIXOTO e SEBADELHE, 2016, p. 54).
Referências
- DUNN, Christopher. Black Rio: a contracultura negra dos anos 70. In: KAMINSKI, Leon (org.). Contracultura no Brasil, anos 70: circulação, espaços e sociabilidades. Curitiba: Editora CRV, 2019.
- FREI DAVID. In: ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araujo (orgs.). Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas, CPDOC-FGV, 2007.
- RETANA, Camilo. Las artimañas de la moda: la ética colonial/imperial y sus vínculos com el vestido moderno. Rev. Filosofía Univ. Costa Rica, XLVII (122), setiembre-diciembre, 2009. p. 87-96.
- SANTOS, Ana Paula Medeiros Teixeira dos. Tranças, turbantes e empoderamento de mulheres negras: artefatos de moda como tecnologia de gênero e raça no evento Afro Chic (Curitiba-PR). 2017. 145 f. Dissertação (Mestrado em Tecnologia e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2017.
- SEBADELHE, José Octávio; PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. 1976 – Movimento Black Rio. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
Texto: Maureen Schaefer França