América Invertida: o mapa de ponta-cabeça

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Parte 1: Joaquín Torres Garcia, o criador da imagem “América Invertida”

Joaquín Torres García na Catedral da Sagrada Família (1903, Barcelona)

O artista, designer, teórico e educador Joaquín Torres Garcia nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1874. Filho de pai catalão, Torres Garcia recebeu seu primeiro treinamento formal no campo das artes aos 17 anos quando se fixou em Mataró, Catalunha, em 1891. Algum tempo depois, ele se estabeleceu em Barcelona, onde cursou Belas Artes e trabalhou com o arquiteto Antoni Gaudí, inclusive, na obra da Catedral Sagrada Família. Em torno de 1907, Torres Garcia deu aulas de arte no Mont d’Or, um centro de educação progressista em Barcelona. Essa experiência, somada à observação de seus próprios filhos, o levou à invenção de brinquedos que estimulassem a criatividade das crianças.

Entre 1920 e 1922, com cerca de 46 anos, ele se fixou em Nova Iorque, tentando produzir seus “juguetes transformables” – compostos por peças intercambiáveis que permitiam às crianças desmontá-los e montá-los da maneira que desejassem – em escala industrial como forma de garantir o sustento da família. De volta a Europa, em 1926, após viver no norte da Itália e no sul da França, Torres Garcia se estabeleceu com a esposa (a pintora catalã Manolita Pinã) e os quatro filhos em Paris. Em meados dos anos 1920, ele realizou exposições individuais e junto a artistas como Mondrian, Picasso, Van Doesburg e Miró.

Em 1934, aos 60 anos, Torres Garcia retornou a Montevidéu, onde fundou o jornal “Circulo Y Quadrado”, divulgando teorias e estéticas modernistas em vigência na Europa Ocidental. No mesmo ano, Joaquín se associou a outros artistas locais para criar a “Associação de Arte Construtiva” (AAC; 1935-39), inspirada em sua proposta de formular uma nova linguagem artística para a América Latina. Tal evento implicou a exploração da arte pré-colombiana e a conceituação pioneira de Joaquín sobre a importância dela na elaboração de um idioma moderno para a arte latino-americana. 

Em 1943, Torres Garcia transformou a AAC no “Ateliê Torres García”, escola-oficina inspirada nas guildas de artesanato medievais (lembrança do movimento Arts & Crafts) e no modelo bauhausiano, que perdurou até 1962. A escola serviu como catalisador para elaboração de suas teorias sobre a função da arte moderna na América Latina. Nessa conjuntura, o estudo de culturas e civilizações indígenas fundamentou a formulação de uma estética vanguardista latino-americana, moldando a noção de construtivismo indígena, um dos princípios fundamentais do Ateliê. Para a classe juvenil, o Ateliê funcionou como um espaço de treinamento experimental para testar a aplicabilidade dos princípios modernistas ao cenário americano. Os membros produziram um conjunto significativo de trabalhos, abarcando pintura, escultura, cerâmica, relevos em madeira e ferro, móveis, murais e projetos arquitetônicos. Torres Garcia rejeitou a orientação industrial, priorizando técnicas artesanais, inovadoras e criativas assim como materiais singelos em vista das limitações materiais de seu contexto. Como modelo para uma comunidade artística integrada, bem como pela amplitude e variedade de materiais que caracterizaram sua produção, o Ateliê não teve precedentes ou paralelos na América Latina.

Torres García e seus alunos (1946). Da esquerda para direita: sentados, desconhecidos, Manuel Pailós, Joaquín Torres-García, Julio Alpuy, Rodolfo Visca. Em pé: Horacio Torres, Augusto Torres, José Gurvich, Manuel Cuña, desconhecidos, Guido Castillo, Jorge Visca, Francisco Matto e Gonzalo Fonseca. Fonte: https://www-ceciliadetorres-com
Torres García e seus alunos (1946). Fonte: https://www-ceciliadetorres-com

Após o falecimento de Joaquín em 1949, aos 75 anos, o Ateliê funcionou até 1962, visto que no final da década de 1950, seus principais membros passaram a deixar o Uruguai para seguir novas trajetórias profissionais. Torres Garcia deixou como legado “La Escuela Del Sur”, o questionamento da subalternização da América Latina em vista do reconhecimento e da defesa do seu legado.  

Parte 2: América Invertida

América Invertida, 1943 – Joaquín Torres Garcia (Uruguai, 1874-1949)

A representação “América Invertida”, desenho a caneta e tinta criado em 1943 por Torres Garcia, ilustra um artigo de sua autoria, no qual ele volta a defender a “Escuela del Sur” – manifesto escrito em 1935. Tal imagem representa a necessidade de autonomia latino-americana, a busca por caminhos próprios. Por meio do manifesto “Escuela del Sur”, o teórico sugere que a América Latina inverta/refute a perspectiva nortecêntrica, conteste sua posição de dependência, valorize seu legado, resgate a arte indígena e sua geometria, estabelecendo um diálogo entre a arte construtiva, fundamentada nas leis “universais”, e o saber dos tempos históricos.

Capa da edição de 1958 da Escuela del Sur, Montevidéu

Tenho dito Escola do Sul porque, na realidade, nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul. Por isso agora colocamos o mapa ao contrário, e então já temos uma justa ideia de nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, desde já, prolongando-se, aponta insistentemente para o Sul, nosso norte. (TORRES GARCIA, 1935).

Torres Garcia, ao retornar para sua terra natal, tinha como objetivo encontrar um caminho para a arte da América Latina – evento articulado à busca das “raízes” por vários movimentos modernistas da região – por meio da combinação da arte pré-colombiana e da arte construtiva. Para ele, somente assim, a América Latina deixaria de ser tributária da cultura europeia e norte-americana – haja vista a sua grande influência nos campos culturais (moda, comportamento, música, cinema, aprendizagem de idiomas estrangeiros e etc.). Sendo assim, ele parece ter proposto uma combinação de referências latino-americanas com elementos europeus/norte-americanos, não parecendo advogar a favor de visões puristas e essencialistas.

Torres García apaga a América do Norte do seu mapa invertido, talvez na tentativa de não criar novas hierarquias, subjugando outros povos, dando relevo para que nós, latino-americanos, possamos olhar para nós mesmos a partir da nossa própria perspectiva, nos libertando do espelho nortecêntrico.

A imagem nos permite, portanto, pensar sobre:

  • a rejeição da colonialidade como referência norteadora do conhecimento;
  • a influência cultural/econômica/política/tecnológica europeia e norte-americana na América Latina;
  • hibridismos culturais;
  • tentativas de construir perspectivas de mundo mais plurais e democráticas;
  • estratégias de resistência aos poderes hegemônicos;
  • formas de desnaturalizar as representações, olhando de forma mais crítica para os interesses e as relações de poder que atravessam as escolhas cartográficas, cujas justificativas, não raras vezes, costumam estar embasadas em decisões supostamente científicas.

Costumamos usar a expressão “nortear” quando nos referimos à orientação, ao nos guiar. Em contrapartida a essa expressão, o físico brasileiro Marcio D’Olne Campos criou o termo “sulear”, propagado por meio de um texto de sua autoria intitulado “A Arte de sulear-se”, publicado em 1991. Nessa publicação, Campos questionou a demarcação de certos espaços e tempos, períodos e épocas da História Universal e da Geografia imposta pelos países considerados centrais no planeta. 

O termo “sulear” foi erroneamente atribuído ao educador, pedagogo e filósofo brasileiro Paulo Freire, que fez uso do vocábulo “suleá-los”, em 1992, em oposição ao verbo nortear no livro Pedagogia da Esperança, que propõe “Um reencontro com a pedagogia do oprimido”. Apesar do termo não constar nos dicionários da língua portuguesa, Freire chamou a a atenção para a conotação ideológica dos termos nortear, norteá-lo, nortear-se, orientação, orientar-se e outras derivações, citando como referência o físico Marcio D’Olme Campos.

Nessa perspectiva, conforme Campos, “em qualquer referencial local de observação, o Sol nascente do lado do oriente permite a orientação. No hemisfério norte, a Estrela Polar, Polaris, permite o norteamento. No hemisfério sul, o Cruzeiro do Sul permite o ‘suleamento’”. E problematiza: “Apesar disto, em nossas escolas, continua a ser ensinada a regra prática do norte, ou seja, com a mão direita para o lado do nascente (leste), tem-se à esquerda o oeste, na frente o norte e atrás o sul, com essa pseudo-regra-prática dispomos de um esquema corporal que, à noite, nos deixa de costas para o Cruzeiro do Sul, a constelação fundamental para o ato de ‘sulear-se’. Não seria melhor usarmos a mão esquerda apontada para o lado do oriente?”.

Para que possamos nos sentir dignos em qualquer lugar que pisarmos, para que possamos desenvolver nossa autoestima e sermos respeitados e valorizados pelo nosso conhecimento e diversidade, Nosso norte é o Sul!

Referências

COSTA, Maria Luiza Calim de Carvalho. O mapa de ponta-cabeça. Anais do World Congress on Communication and Arts. São Paulo, 17 a 20 de abril. 2011. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/134669/ISSN2317-1707-2011-01-01-193-197.pdf>. Acesso em: 03/03/02.

PINACOTECA. Joaquín Torres Garcia. Disponível em: <https://pinacoteca.org.br/programacao/joaquin-torres-garcia/>. Acesso em: 03/03/22.

RAMÍREZ, Mari Carmen. El Taller Torres-García, The School of the South and Its Legacy. University of Texas Press, 1992.

TAVARES, Elaine. A origem do sulear. Disponível em: <https://iela.ufsc.br/noticia/origem-do-sulear>. Acesso em: 04/03/22.

Texto: Maureen Schaefer França
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