Texto: Carolina Rolim. Orientação: Profa. Maureen Schaefer França. Trechos retirados de: ROLIM, Carolina. Do silêncio à expressão: a atuação de mulheres no design gráfico da América Latina. TCC - Tecnologia em Design Gráfico. Universidade Tecnológica Federal do Paraná, 2025.
1. Estudos de Gênero e História do Design
A história do design foi, durante muito tempo, contada a partir de lentes eurocêntricas e androcêntricas, que priorizaram vozes masculinas e relegaram ao silêncio as múltiplas contribuições de mulheres designers. A ausência do gênero como categoria analítica dos discursos sobre design contribuiu para uma invisibilização sistêmica, onde a atuação feminina foi empurrada para as margens ou encapsulada em papéis tidos como secundários ou periféricos.
Esse apagamento histórico não é fruto do acaso, mas expressão da intersecção de estruturas de opressão que influenciam a sociedade e das formas pelas quais o design foi institucionalizado como campo disciplinar. Sua consolidação ocorreu em espaços historicamente concebidos como majoritariamente masculinos — universidades, agências, editoras — onde o reconhecimento de homens e mulheres se realizou de forma desigual (Landim e Jorente, 2021). Mulheres que atuaram em práticas gráficas, tipográficas, têxteis, artesanais foram muitas vezes excluídas da categoria profissional “designer”, mesmo quando seus fazeres revelavam profundidade técnica, sensibilidade estética e relevância cultural.
Contudo, nas últimas décadas, têm emergido vozes críticas e feministas que propõem reconstruir histórias esquecidas. Pesquisadoras da área de gênero vêm reivindicando um lugar para as experiências femininas e feministas na história do design. Conforme Ana Júlia de Melo Almeida (2024), a década de 1980 foi um período importante no que tange aos estudos feministas realizados em termos anti-essencialistas e interseccionais como: Age, Race, Class and Sex (1980), de Audre Lorde; e Demarginalizing the Intersection of Race and Sex (1989), de Kimberlé Crenshaw; A categoria político-cultural da amefricanidade (1988), de Lélia Gonzalez. Estas pesquisas ampliaram as possibilidades de compreender as experiências, as vivências e os obstáculos enfrentados por mulheres, abarcando interações entre marcadores como gênero, raça/etnia, classe social e orientação sexual.
A década de 1980 também foi um momento importante para aplicação de estudos feministas e de gênero nas pesquisas em design: A Woman’s Touch: Women in Design from 1680 to the present day (1984), de Isabelle Anscombe; Toward a Feminist Analysis of Women and Design (1986), de Cheryl Buckey; View from the Interior: Feminism, Women and Design (1989), de Judy Atfield e Pat Kirkham; FORM/Female FOLLOWS FUNCTION/Male: Feminist Critiques of Design (1989), de Judy Attfield (Almeida, 2024).
A filósofa argentina Maria Lugones (1944-2020) trouxe contribuições no que tange às articulações entre feminismo e Estudos Decoloniais. Em 2008, a pesquisadora publicou o capítulo Colonialidad y género: hacia un feminismo descolonial no livro Género y Descolonialidad. Lugones teceu críticas a visões universalistas/eurocêntricas, dando relevo para a colonialidade como uma lógica opressiva calcada em dicotomias hierárquicas: humanos (brancos europeus colonizadores) e não-humanos (povos colonizados). Nesta perspectiva, gênero foi reservado para os colonizadores e sexo para os colonizados. Supostamente, mulheres colonizadas não eram dotadas, portanto, de gênero, sendo vistas apenas como fêmeas, seres selvagens, menos racionais, hipersexualizados. Ademais, para Lugones, binarismos de gênero (homem x mulher) são invenções coloniais, uma vez que não existiam relações de gênero binárias e hierárquicas nas culturas de vários povos originários de Abya Yala (1), região hoje chamada de América Latina. Sendo assim, Lugones pode nos ajudar a compreender porque designers homens e mulheres do Norte Global costumam ser mais valorizados do que os/as profissionais da América Latina, que tendem a ser mais invisibilizados nos livros de História do Design.
2. Invisibilização de mulheres da América Latina em livros de História do Design
Se levássemos em conta livros clássicos da História do Design – produzidos em grande medida a partir de uma perspectiva nortecêntrica -, eles nos levariam a crer que praticamente não existe prática projetual na América Latina. No livro “Design Gráfico: uma história concisa” (Figura 1), publicado originalmente em 1994, o autor, o britânico Richard Hollis, abarca sobretudo criações gráficas europeias e estadunidenses. Cuba é o único país latino-americano a ser lembrado ao longo das quase 250 páginas (França, 2022). Hollis aborda 4 peças gráficas cubanas, 1 delas sem autoria e 3 delas (supostamente) projetadas por homens. Supostamente porque 1 das três peças, no caso o cartaz “Dia da Guerrilha Heróica”, de 1968, é atribuída erroneamente a Tony Evora e não à criadora original: Helena (Elena) Serrano (2), apagando a autoria feminina. Serrano é citada como criadora do cartaz em diversos livros como: Carteles Cubanos entre 1959 y 1989 (2017), produzido pelo fotógrafo Julio Larramendi e pelos colecionadores José A. Menendez (popularmente conhecido como Pepe) e Damián Viñuela – todos cubanos. De acordo com Rafael Efrem de Lima (2017), 447 homens são citados no livro “Design Gráfico: uma história concisa”, de Richard Hollis. A partir da pesquisa de Lima, identifiquei que entre os homens listados, apenas 2 são latino-americanos: os cubanos Felix Beltran e René Azcuy. E entre as 10 mulheres citadas por Lima, não identifiquei nenhuma latino-americana, visto que a única (Helena Serrano), tem seu nome obliterado.

“História do Design Gráfico” (Figura 2), dos estadunidenses Philip Meggs e Alston Purvis e cuja primeira edição é do ano de 1983, é outro livro clássico da História do Design. Neste livro, os autores também dão relevo para produções europeias e dos Estados Unidos. Com relação à América Latina, Meggs e Purvis, assim como Hollis, abrangem produções gráficas cubanas além de incorporar projetos mexicanos. No entanto, em cerca de 700 páginas, os autores reservam apenas 8 páginas para tratar do design gráfico realizado por latino-americanos (França, 2022). Com relação às peças gráficas cubanas, 3 são abordadas por Meggs e Purvis: 1 sem autoria, 1 com autoria masculina (Raul Martinez) e 1 com autoria feminina (Elena Serrano). A respeito dos projetos mexicanos todos se referem às Olimpíadas de 1968: alfabeto, logotipo, pictogramas e selos. Com relação ao logotipo, apenas o nome de Lance Wyman, designer estadunidense que ganhou a competição internacional para criar a identidade visual das Olimpíadas, foi citado. No entanto, segundo o site das Olimpíadas (2025), os mexicanos Pedro Ramirez Vazquez (arquiteto e presidente do Comitê Organizador dos Jogos) e Eduardo Terrazas (pintor mexicano) também colaboraram com o projeto, tendo seus nomes apagados por Meggs e Purvis. Wyman também é o único a receber os créditos pela criação do alfabeto e dos selos. A única exceção diz respeito aos pictogramas, uma vez que foram citados dois mexicanos além de Wyman: Eduardo Terrazas e Manuel Villazón (ex-ulmiano e aluno de Otl Aicher, fundou o primeiro curso de diseño industrial do país na Universidad Iberoamericana – UIA, 1959). Lima (2017) afirma que 1058 homens são citados no respectivo livro, sendo assim, a partir disso identifiquei que apenas 3 deles são latino-americanos (Raul Martinez, Eduardo Terrazas e Manuel Villazón). E entre as 77 mulheres citadas, identifiquei que apenas uma é latino-americana: Helena Serrano.

Mas se levarmos em conta livros sobre história das mulheres no design, será que encontramos alguma designer latino-americana? No livro “Women in Design: from Aina Aalto to Eva Zeisel” (Figura 3), as autoras Charlotte e Clementine Fiell – respectivamente, mãe e filha – abordam, individualmente, 103 mulheres designers e, coletivamente (estúdio ou movimento de design), mais 20 mulheres, totalizando em 123. Apenas uma delas teve maior proximidade com a América Latina, ou mais especificamente, com o Brasil: Lina Bo Bardi (1914-1992), arquiteta nascida na Itália, que emigra para o Brasil em 1946, onde passa a residir até o seu falecimento. Lina chegou a realizar projetos gráficos, sobretudo no que tange a algumas capas da revista Habitat (Instituto Bardi/Casa de Vidro, 2020). Em outras palavras, o livro também é escrito, em grande medida, a partir de uma perspectiva nortecêntrica.

O livro “Baseline Shift: Untold Stories of Women in Graphic Design History” (Figura 4), editado pela professora de design gráfico estadunidense Briar Levit, aborda em maior parte textos sobre a atuação de mulheres nos Estados Unidos, embora considere criativas indígenas e negras, não raras vezes, excluídas da historiografia do design. Logo, entre as histórias contadas, 8 referem-se aos Estados Unidos, 2 à Grã-Bretanha, 1 à Suécia, 1 à Alemanha, 1 ao Japão, 1 à Àfrica do Sul e 1 ao Brasil. Ou seja, é destacada a experiência de apenas uma mulher latino-americana, a saber, a designer gráfica Bea Feitler, que atuou no Brasil sobretudo no campo editorial, a lembrar de capas para a revista Senhor e para livros de Fernando Sabino. Ela se formou nos Estados Unidos e realizou projetos para revistas como Harper’s Bazaar e Ms.. Inclusive, a escolha de Feitler pode ter sido motivada, em parte, justamente por sua atuação nos Estados Unidos, uma vez que o livro Baseline Shift foi publicado originalmente no respectivo país. Vale comentar ainda, que o texto em questão foi escrito por uma brasileira: a jornalista e designer gráfica Tereza Bettinardi.

Portanto, a partir da análise dos 4 livros, foi possível identificar apenas 3 mulheres latino-americanas: 1 cubana (Helena Serrano), 1 brasileira (Bea Feitler) e 1 ítalo-brasileira (Lina Bo Bardi), todas elas articuladas, de certo modo e em certa medida, ao campo do design gráfico. Vale comentar que duas delas – Lina Bo Bardi e Bea Feitler – obtiveram maior visibilidade, inclusive, há livros que tratam de suas trajetórias, a saber, O design de Bea Feitler; Lina Bo Bardi: Habitat; Ao lado de Lina; Lina Bo Bardi: o que eu queria era ter história entre outros.
Diante desse cenário, torna-se urgente a construção de uma história do design que seja mais plural, justa e representativa — uma história que reconheça o protagonismo das mulheres latino-americanas como criadoras, educadoras, pensadoras e ativistas do campo. Ao incorporar estudos de gênero e decoloniais como lentes críticas, o design se abre a novas epistemologias e práticas, capazes de transformar não apenas o que/como/para quem se projeta, mas também como se escreve sobre design.
3. Considerações
O design na América Latina é atravessado por processos históricos complexos, marcados por influências coloniais, imperialistas e modernistas, heranças locais, resistências culturais, dinâmicas populares, projetos políticos e pela fusão de expressões locais e estrangeiras. Mesmo assim, o apagamento de projetos da América Latina de livros de História do Design e a consequente desvalorização de profissionais latino-americanos, inclusive pelos próprios criativos da região é visível. Possivelmente, esse apagamento é atravessado pela colonialidade do poder e do saber, que criou hierarquias étnico-raciais, subjugando populações da América Latina. A colonialidade, que é atualizada continuamente, provavelmente influencia o modo como profissionais latino-americanos tendem a ser vistos, ou seja, como criativos menos desenvolvidos intelectualmente do que os do Norte Global, sendo supostamente menos capazes de criar “bons designs” ou simplesmente “designs” (França, 2024).
A atuação das mulheres muitas vezes é silenciada e depreciada, uma vez que o fazer criativo é marcado não apenas por desigualdades de classe e raça, mas também de gênero. O apagamento de suas vozes, gestos, práticas, conhecimentos e invenções é sistemático. Elas bordaram territórios, projetaram objetos do cotidiano, traduziram conhecimentos e afetos em formas — muitas vezes sem assinaturas, sob pseudônimos, sem reconhecimento, sem espaço nos livros. Mulheres latino-americanas sofrem um duplo apagamento a partir da intersecção de estruturas de opressão como o racismo e o machismo – embora questões de classe também possam ser consideradas, visto que países da América Latina foram/são “subdesenvolvidos”, no contexto capitalista, às custas do “desenvolvimento” de países europeus.
Reconstruir a história do design com outras lentes é mais do que incluir nomes esquecidos — é romper silêncios, reconstruir caminhos, desnaturalizar opressões e questionar a historiografia hegemônica. É entender o design como campo simbólico e político, onde se disputam espaços, memórias e sentidos. Ao reconhecer a contribuição das mulheres na construção do design latino-americano, revelam-se discursos, práticas e materialidades que contribuíram para o desenho da paisagem gráfica da América Latina. Abrem-se também oportunidades de conscientização acerca das opressões, de modo que estas possam ser tensionadas no tempo presente. Portanto, mais do que tentar reelaborar o passado, trata-se de moldar um presente mais justo, diverso e democrático.
Notas de Rodapé
- Termo originário da língua kuna, significando “terra em plena madurez”, “terra de sangue vital”, fazendo alusão ao território que os colonizadores espanhóis chamaram de “América” (Dutra e Bandeira, 2015).
- Em alguns livros, o primeiro nome da designer consta como Elena e em outros como Helena. No livro cubano “El cartel de la Revolución: carteles cubanos entre 1959 y 1989”, consta Helena com H.
Referências
- ALMEIDA, Ana Júlia Melo. Gênero como modo de leitura para a história do design. In: ALMEIDA, Ana Júlia Melo; FLESLER, Griselda; LOSCHIAVO, Maira Cecília; NORONHA, Raquel. Design e Gênero: experiências coletivas de ensino. São Luís, EDUFMA, 2024.
- FRANÇA, Maureen Schaefer. Design gráfico na América Latina. Teoria do Design, 13 set. 2022. Disponível em: https://teoriadodesign.com/design-grafico-na-america-latina/.
- FRANÇA, Maureen Schaefer. Design na América Latina. Slides, 2024.
- INSTITUTO BARDI/CASA DE VIDRO. Série Revistas: Habitat 70 anos – nº 3. 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1432137276991626&id=354389484766416&set=a.362953370576694.
- LANDIM, Laís Alpi; JORENTE, Maria José Vicentini. O lugar das questões de gênero na pesquisa em Design da Informação. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, v. 14, n. 2, p. 629–639, 2021. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/RICI/article/view/37386.
- LIMA, Rafael Leite Efrem. Designers mulheres na História do Design Gráfico: o problema da falta de representatividade profissional feminina nos registros bibliográficos. In: Anais do XXIX Simpósio Nacional de História. Julho/2017