Esta série, lançada no Dia Internacional das Mulheres, apresenta uma breve trajetória e a produção de mulheres designers num recorte temporal amplo, que compreende os séculos XIX, XX e XXI. São registros de pesquisas desenvolvidas por estudantes e apresentadas no formato de seminários nas disciplinas de Teoria e História do Design dos cursos de Design da UTFPR.
Apesar das mulheres estarem envolvidas com o design das mais variadas formas – como profissionais da área, teóricas, historiadoras, consumidoras e como objetos de representação -, a literatura sobre história, teoria e prática do design nos levaria a crer que suas contribuições foram mínimas, uma vez que as intervenções dos setores femininos no campo do design, tanto no passado quanto no presente, foram e ainda são, muitas vezes, ignoradas (BUCKLEY, 1986). Onde estão as mulheres designers? Por quê a produção de mulheres parece invisível? Por que algumas áreas do design foram historicamente desvalorizadas (artesanato, têxteis, moda, ilustração infantil) e permanecem assim ainda hoje? Como operam as dicotomias tais como esfera pública e privada, artesanato e indústria, artes decorativas e design funcional e quais suas consequências para os processos de apagamento? Com essas perguntas iniciamos um minicurso, eu e Maureen Schaefer França, sobre invisibilidade das mulheres no design, com o objetivo de mapear a produção de mulheres e construir outras narrativas sobre design. De lá para cá, algumas pesquisas se desenvolveram nas disciplinas e fora delas, como trabalhos de conclusão de curso, palestras e textos.
A invisibilização na história do design consiste em um conjunto de estratégias de apagamento da atuação e produção de mulheres: a definição de design adotada, os registros históricos, relacionamentos, maternidade, divisão do trabalho. . A definição de design é determinante na exclusão ou inclusão das mulheres, como o design definido em função da produção industrial em larga escala. As teóricas feministas têm defendido que o design que enfatiza apenas uma forma de produção invisibiliza o trabalho das mulheres porque exclui a produção artesanal e em pequena escala. O local de produção também interfere na visibilidade: a esfera doméstica não recebe a mesma valorização da indústria, porque a esfera do trabalho/empresa faz parte de uma lógica capitalista mais explícita, que considera a fábrica ou escritório como o espaço do trabalho profissional remunerado, especializado, enquanto a esfera doméstica é considerada como espaço de reprodução, do cuidado, do trabalho não remunerado, amador ou pouco especializado.
Mulheres também foram excluídas das academias de arte por muito tempo, não frequentaram aulas com modelo vivo, pois considerava-se inapropriado observarem corpos despidos. A sociedade burguesa europeia do século XIX estabeleceu classificações do que era uma arte “feminina”, em oposição à “masculina”, colaborando para a criação de estereótipos sobre as capacidades intelectuais associadas aos sexos (SIMIONI, 2007, p.91).
De acordo com Cheryl Buckley , o patriarcado é uma categoria central para a crítica feminista, pois tem limitado as oportunidades das mulheres em várias áreas da sociedade e do design. O patriarcado pode ser definido como “o poder que homens usam para dominar mulheres” (HOOKS, 2020, p.145). Categoria controversa nas teorias feministas, pois a noção de dominação não amplia as discussões sobre as formas de opressão e dominação atravessadas por outras categorias como classe e raça. O patriarcado tem como consequência os estereótipos, que têm grande influência nos espaços físicos, tanto na esfera pública quanto na privada, nos relacionamentos e tipos de ocupações, assim como nas áreas de atuação no design. O patriarcado valoriza áreas de design nas quais os homens atuam, como o design industrial, e deprecia os campos nos quais as mulheres trabalham, como têxteis e produções artesanais.
A natureza ideológica de termos como “feminino, delicado e decorativo” deve ser discutida na análise da produção de mulheres no design. As mulheres são consideradas hábeis decoradoras e profissionais meticulosas, com preferência natural pelas artes decorativas, tais como: bordado, ilustração, tecidos, tapeçaria, costura e cerâmica. Os homens podem atuar nas mesmas áreas, porém as atividades devem ser redefinidas em termos aceitáveis para as masculinidades. As funções desempenhadas por homens são consideradas mais culturais do que naturais, em oposição às mulheres, que são mais associadas às funções “naturais”, de acordo com sua capacidade biológica de reprodução. Assim, atividades relacionadas ao cuidado e alimentação da família são associadas às mulheres como extensão de suas habilidades biológicas.
Nos debates sobre gênero, não são as diferenças sexuais que são acionadas, mas as formas pelas quais elas são representadas, como são nomeadas enquanto características masculinas ou femininas e como se configuram as ideias sobre os espaços de atuação de homens e mulheres na sociedade. Mesmo disfarçada de senso comum ou revestida por uma linguagem considerada científica, a distinção biológica/ sexual “serve para compreender — e justificar — a desigualdade social” (LOURO, 2007, p. 21). As diferenças sexuais são usadas como argumento de afirmação de hierarquias que são tratadas como “naturais”, reforçando desigualdades de gênero. Por exemplo, as meninas seriam mais “delicadas” e gostariam “naturalmente” de brincar com bonecas e de cozinhar, enquanto os meninos seriam mais “agitados”, “esportivos” e “aventureiros” por conta de hormônios e questões biológicas. Esses exemplos podem ser facilmente percebidos em uma loja de brinquedos e artigos infantis. Não estamos negando as diferenças biológicas, porém essas diferenças não são determinantes de comportamentos de gênero.
Os estereótipos de gênero são construídos e naturalizados a partir de oposições binárias, que costumam ser acionadas para legitimar desigualdades de gênero no campo do design. Os estereótipos utilizam “algumas características fáceis de compreender e lembrar, amplamente compartilhadas, reduzindo as pessoas ou grupos de pessoas a tais peculiaridades, exagerando-as, simplificando-as e fixando-as como imutáveis” (SANTOS, 2011, p.172). Estereótipos são representações que estabelecem regimes discursivos e de poder.
Estereótipos de gênero também podem ser perpassados por contradições. Com a ênfase na separação das esferas pública e privada durante o século XIX e estímulos a novas atribuições femininas enquanto consumidoras e decoradoras, Elsie De Wolfe (1865-1950) ganhou relevo como pioneira na decoração de interiores nos Estados Unidos, sendo muito requisitada pelos setores abastados. Embora Elsie enfatizasse a ideia de bom gosto sob um viés classista, destacou-se como a primeira mulher a atuar como decoradora profissional num campo dominado pelos arquitetos, transgredindo limites de gênero.
Alguns fatores podem reforçar ou diminuir a invisibilização de mulheres no design. As parcerias, sejam pelas relações familiares ou pelo casamento, podem tanto diminuir como aumentar o apagamento de designers mulheres. Classe social também é um fator fundamental, pois as mulheres que tiveram acesso à educação formal têm diferentes possibilidades de atuação. Raça é outra categoria que pode aumentar ou diminuir a invisibilidade. Mulheres brancas têm experiência e trajetória de vida muito diferente das mulheres negras.
Esses fatores foram discutidos durante os seminários que apresentaram as trajetórias de diferentes designers, que atuaram em diversas áreas. Algumas designers tiveram sua produção ofuscada pela atuação de seus companheiros ou familiares (Pamela Colman Smith, Lella Vignelli, Anna Maria Niemeyer, Estella Aronis, Lilly Reich); outras receberam notoriedade devido às relações familiares e de parentesco, ou ainda despertaram interesse por sua trajetória devido às parcerias (Claudia Moreira Sales, Emilie Flöge, Florence Knoll Bassett). Algumas possuem exposições individuais, livros, pesquisas e outras não conseguimos afirmar nem mesmo nome, data e local de nascimento (Dorothea Gaspary). Designers que desenvolveram produtos inseridos no cotidiano que não figura nos livros de história do design (Beatris Scomazzon), enquanto outras são temas de revistas de decoração (Jaqueline Terpins, Patricia Urquiola). As designers que foram propostas dos seminários formam um panorama em diferentes áreas de atuação, lugares, formação e mecanismos de (in)visibilidade. Conhecer a produção de mulheres designers possibilita compreender narrativas sobre atividades, práticas, conhecimentos e habilidades que foram historicamente desvalorizadas. A articulação entre História do Design & Estudos de Gênero é um caminho possível para discutirmos estratégias que possam conferir maior visibilidade às mulheres no design, valorizando outras narrativas sobre o campo e suas práticas.
Referências
BUCKLEY, Cheryl. Made in patriarchy: Toward a Feminist Analysis of Women and Design. In: Design Issues, vol. 3, n. 2 (out, 1986), pp. 3-14.
CRESTO, Lindsay; FRANÇA, Maureen Schaefer. A invisibilidade das mulheres na história do design. Disponível em: <https://teoriadodesign.com/a-invisibilidade-das-mulheres-na-historia-do-design/>. Acesso em: 12/10/22.
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
SIMIONI, Ana Paula. Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: EDUSP, 2007.
JORGE, Aline. Mulheres no design gráfico: uma discussão necessária. Medium. 2017. Disponível em:< https://medium.com/@aline.jorge/mulheres-no-design-gr%C3%A1fico-uma-discuss%C3%A3o-necess%C3%A1ria-9ac1328a2474>
MILLER, Cheryl D. Black Designers: Missing in Action,. Print Magazine, Sept/Oct 1987.
MORENO, Ingrid Carolina. O lado feminino do design gráfico. Notas de Fogueira. 2017. Disponível em:< https://feminismoymedios.wordpress.com/2017/09/05/el-lado-femenino-del-diseno-grafico/>
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Azul para meninos e rosa para meninas? O design como tecnologia de gênero.. In: Humberto da Cunha Alves de Souza, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira (org). Caminhos da pesquisa em diversidade sexual e de gênero : olhares in(ter)disciplinares. Curitiba: IBDSEX, 2020. p. 66-79. Disponível em:<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/redes/valorizacao_diversidade/cartilhas/LIVRO%20-%20LIVRES%20E%20IGUAIS%20-%20PALESTRAS%20%20DO%20CONGRESSO%20LGBTI%2B.pdf>
SCHNEIDER, Beat. Design – Gênero. In: SCHNEIDER, Beat. Design, uma introdução. O design no contexto social, cultural e econômico. São Paulo: Edgard Blücher,2010 (p.249-255).
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade. Vol. 20 (2), jul.-dez. 1995, p. 71-99.