Cor rosa & relações de poder

0 Compartilhamentos
0
0
0
0
0

As cores não são neutras, nem mesmo as cores “neutras” são neutras, uma vez que são construídas socialmente, sendo atravessadas por visões de mundo, interesses e desigualdades sociais. Os significados das cores variam conforme o tempo e o lugar, sendo múltiplos e muitas vezes contraditórios, sendo perpassados por questões de classe, gênero, sexualidade, raça/etnia e idade/geração. Os aspectos cromáticos dos artefatos, entre outras características materiais, transcendem questões de gosto, uma vez que são capazes de ampliar ou restringir ideias a respeito dos modos de ser e estar no mundo, moldando comportamentos e autorizando ou interditando campos de ação. Nesta perspectiva, os brinquedos infantis costumam ser produzidos a partir de dicotomias de gênero, sendo os masculinos geralmente azuis e os femininos comumente rosas. Mas, apesar das meninas usarem, por vezes, brinquedos “de meninos”, raras vezes meninos costumam brincar com brinquedos “de meninas”, visto que a estes artefatos são atribuídos valores diferenciados, sendo os masculinos mais valorizados socialmente.

A partir disso, apresentamos como a cor rosa passou a ser vinculada às feminilidades. No século XIX, setores masculinos da burguesia europeia deixam de vestir roupas coloridas, preferindo roupas sóbrias para trabalhar, visto que evocavam maior seriedade e respeitabilidade. O uso das cores fica restrito então a coletes e a gravatas, algumas peças, inclusive, na cor rosa visto que a mesma ainda não estava associada preferencialmente às feminilidades. O rosa é distanciado, em maior medida, do mundo masculino a partir da Primeira Guerra Mundial. Neste momento, o vermelho (matiz base da cor rosa) dos uniformes militares é substituído pela cor cáqui, tensionando as articulações entre força, virilidade e a cor vermelha, afetando as relações entre as masculinidades e a cor rosa. Contraditoriamente, em torno dos anos 1920, a adoção da bandeira vermelha com a foice e o martelo pelo governo soviético estimula a associação da cor rosa à fraqueza, às frivolidades e ao sentimentalismo.

Na França, na Itália e na Espanha, a cor rosa passa a ser utilizada na classificação de gêneros novelescos para se referir a produções de pior qualidade, vinculando a cor à debilidade, ao mal gosto e à imoralidade. Devido a estes antecedentes, é possível que o regime nazista tenha decidido pregar triângulos rosas nos uniformes usados por homossexuais como forma de identificá-los nos campos de concentração.

Em contrapartida, nos anos 1930, o “rosa shocking” criado pela estilista italiana Elsa Schiaparelli para a embalagem do perfume Shocking, como também para peças de roupas, articula a tonalidade mais forte e intensa a um modelo de feminilidade mais provocadora. Neste momento, inclusive, alguns dos executivos tentam desencorajá-la a usar o “rosa shocking” por se assemelhar à cor utilizada por mulheres e homens negros nos Estados Unidos como signo de identidade racial. De qualquer modo, até a Segunda Guerra Mundial, o uso da cor rosa em função da identidade de gênero não estava totalmente definido nos países ocidentais.

“Rosa shocking” criado pela estilista italiana Elsa Schiaparelli para a embalagem do perfume Shocking (anos 1930)

Possivelmente, a articulação entre feminilidades e a cor rosa ganhou relevo nos Estados Unidos, sobretudo, a partir de roupas utilizadas por mulheres de maior reconhecimento social como atrizes e primeiras-damas. Em 1953, a primeira-dama Mamie Doud usou um vestido rosa na cerimônia de posse do presidente Dwight Eisenhower (1953-1961). Entretanto, o uso da cor rosa não era uma novidade para Mamie, uma vez que ela costumava utilizar a tonalidade para decorar as várias casas para as quais haviam se mudado ao longo dos anos, em vista do cargo de general de Eisenhower, a fim de (re)criar uma atmosfera “familiar” e confortável. Sua fixação pela cor se repetiu, inclusive, na decoração da Casa Branca, a qual a imprensa passou a chamar de “Pink Palace”. A tendência acabou por difundir nos Estados Unidos uma tonalidade que ficou conhecida como “first lady pink” ou “Mamie’s pink”. Jacqueline Kennedy, a sucessora de Mamie, também usava um conjunto rosa quando o presidente John Kennedy (1961-1963) foi assassinado, reforçando a relação entre a cor rosa e o “mundo feminino”. 

Mamie Eisenhower
John e Jacqueline Kennedy

Ainda nos anos 1950, Marilyn Monroe estrelou o filme Os homens preferem as loiras (1953), no qual a atriz vestiu um vestido rosa, articulando a cor à sensualidade. Em Funny Face (1957), filme protagonizado por Audrey Hepburn e ambientado no mundo da moda, a aliança entre a cor rosa e ideias relacionadas às feminilidades como beleza, elegância, estilo, alegria e consumo são articuladas explicitamente na cena do musical Think Pink!. Nesta conjuntura, vários estilistas da alta-costura como Dior e Balenciaga exploraram várias tonalidades de rosa em suas criações. A tendência foi reafirmada durante os anos 1960, quando muitos produtos – assim como embalagens e peças publicitárias – dirigidos ao público feminino passaram a ser criados frequentemente na cor rosa. Na capa da edição de 15 abril de 1963 da Vogue estadunidense, estampada com a fotografia de Jane Shrimpton, a chamada “Pink pink pink inside and out” destaca o modismo da cor rosa no mundo da moda e da beleza, sendo discutida ao longo de vinte páginas da revista. Diante disso, o rosa passa a ser vinculado com maior força, pelo menos desde os anos 1950, às feminilidades, evocando variados sentidos conforme a tonalidade, tais como fragilidade, debilidade, ingenuidade, sensibilidade, cuidado, erotismo, sedução, jovialidade e elegância. Neste sentido, várias feministas, ao longo das décadas de 1960 e 1970, se recusavam a comprar roupas rosas para suas filhas, pois a cor estava fortemente associada às feminilidades tradicionais naqueles anos.

Marilyn Monroe no filme “Os homens preferem as loiras” (1953)

Mas, o rosa também foi empregado como forma de contestação ao conservadorismo e como instrumento de luta contra desigualdades sociais. No período entreguerras, Gatsby, personagem de F. Scott Fitzgerald, usa um traje rosa como símbolo de estilo de vida de um homem moderno frente à sobriedade do capitalista tradicional. Nos anos 1930/1940, homens negros estadunidenses passam a usar ternos zoot na cor rosa com o objetivo de afirmar sua identidade racial. Tempos depois, Elvis Presley usa trajes e passeia em Cadillacs rosas como a intenção de marcar uma posição inconformista. Nos anos 1970, homens heterossexuais passam a usar roupas rosas na tentativa de se constituírem como pessoas mais modernas e sensíveis, tensionando as masculinidades normativas. No mesmo período, diversos coletivos gays se apropriam do triângulo rosa utilizado pelos nazistas como símbolo de resistência identitária. Isso demonstra, portanto, o caráter histórico, contextual e arbitrário das codificações da cor rosa, não sendo possível, portanto, ligar as cores a preferências inatas, por exemplo, rosa para meninas e azul para meninos. Ou seja, as restrições dos modos de ser e estar no mundo mediadas pelas cores são fictícias, embora tenham efeitos concretos, muitas vezes, subjugando e oprimindo indivíduos.

Anos 1970

Referências

  • LLORENTE, Lucina; GUTIÉRREZ, Juan. Una mirada a la historia del color rosa. In: Indumenta, mar. 2020, p. 82-93.
  • PAOLETTI, Jo. Pink is for boys. In: PAOLETTI, Jo. Pink and Blue – telling the boys from the girls in America. Indiana: Indiana University Press, 2012.
  • SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Azul para meninos e rosa para meninas? O design como tecnologia de gênero. In: SOUZA, Humberto da Cunha Alves; JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo. Caminhos da Pesquisa em diversidade sexual e de gênero: olhares in(ter)disciplinares. Curitiba: IBDSEX, 2020. p. 66-79.
Texto: Maureen Schaefer França
Você também pode gostar