“O carro é uma extensão da casa”. Com essa visão, o designer-chefe da seção de estilo da General Motors, Harley Earl, convenceu a empresa a incluir mulheres designers em seu departamento nas décadas de 1940 e 1960 nos EUA. Para Earl, a empresa estava acrescentando um “ponto de vista feminino” à GM, pois a presença de mulheres no design automotivo poderia ser uma boa ferramenta de marketing também. Na época, as mulheres tornaram-se potenciais clientes de automóveis e cerca de três a cada quatro carros eram comprados de acordo com a escolha delas.
Earl criou uma equipe que ficou conhecida como Damsels of design (Donzelas do design), mulheres responsáveis pelo design de elementos interiores dos veículos (porta guarda-chuva, armazenamento para brinquedos etc.). As primeiras contratações no departamento de estilo incluíram Helene Rother, que ingressou na GM em 1943, e Amy Stanley, em 1945. Segundo Natalie Morath, arquivista da GM, a montadora manteve em segredo as notícias sobre as designers mulheres. Até meados da década de 1950, quando Earl decidiu contratar mais mulheres e recrutou designers do programa de design industrial do Instituto Pratt no Brooklyn, em Nova York, e da Academia de Arte Cranbook. O grupo incluía também Suzanne Vanderbilt, Ruth Glennie, Marjorie Ford Pohlman, Jeanette Linder, Sandra Longyear e Peggy Sauer – que atuaram nos departamentos de design de interiores automotivos da GM para marcas como Chevrolet, Buick, Cadillac, Oldsmobile e Pontiac. Lá elas trabalharam em todos os elementos do interior do veículo (bancos, portas, acabamentos, detalhes, cores e tecidos), exceto o painel de instrumentos, que era considerado proibido para mulheres. As outras quatro Donzelas – Jan Krebs, Dagmar Arnold, Gere Kavanaugh e Jayne Van Alstyne – trabalharam como designers industriais para a Frigidaire, de propriedade da GM, onde ajudaram a criar a Cozinha do Amanhã, e também projetaram displays e exposições para o departamento de estilo.
As talentosas designers desenvolveram características femininas amigáveis nos automóveis, que mais tarde seriam incorporadas aos veículos, tais como espelhos de maquiagem com iluminação, fechaduras á prova e crianças, consoles práticos de armazenamento e cintos de segurança retráteis. As designers também ajudaram a moldar uma estética feminina muito mais suave, que adotou as últimas tendências de cores (Fiell, Fiell, 2019).
As “Donzelas do Design” obtiveram grande influência na primavera de 1958, quando Harley Earl criou o que foi chamado de Salão do Automóvel Feminino no Styling Dome da GM. Cada estúdio foi encarregado de preparar dois carros. As mulheres teriam total controle sobre sua aparência. A exposição foi apresentada numa cúpula repleta de jacintos, canários cantores e iluminação suave, obra de Gene Kavanaugh, uma das donzelas que trabalhou em exposições e exibições.
Neste salão, Jeanette Linder representou a Chevrolet com o Impala Martinique: um conversível amarelo perolado e branco com estofamento em um tecido de quatro cores especialmente projetado para este modelo. O mesmo tecido foi utilizado para forrar o porta-malas e criar um conjunto de malas personalizadas. Dentro da cabine, espelhos de maquiagem iluminados e uma penteadeira montada no porta-luvas.
Ruth Glennie representou a Chevrolet com o Fancy Free Corvette, pintado de verde-oliva metálico, com um interior combinando, que foi realçado por quatro conjuntos de capas de assento, um para cada estação. Eles variavam de uma estampa amarela para o verão até uma pele preta para o inverno. O Fancy Free também foi equipado com um compartimento de armazenamento para uma bolsa e – uma inovação na GM – cintos de segurança retráteis.
Marjorie Ford Pohlman representou a Buick com dois carros: o conversível Tampico Buick Special com interior laranja flamejante. Apresentava assentos anatômicos e um console de armazenamento para binóculos e uma câmera fotográfica. Ela também projetou o Shalimar, veículo de quatro portas topo de linha na cor roxo real profundo, com um interior de couro roxo e preto. O veículo contava ainda com um roupão, que podia ser guardado na parte traseira do banco dianteiro, e um ditafone no porta-luvas.
Sandra Longyear representou o Pontiac Studio com dois veículos. O Star Chief marrom tinha assentos estofados em couro, com acabamento assimétrico, e um sistema exclusivo de alças de couro no porta-malas para guardar mantimentos. E o Bonneville Polaris conversível tinha acabamento em uma cor que ela chamou de Starfire Blue. Apresentava assentos com acabamento em couro azul bicolor, bem como um compartimento de armazenamento para equipamentos de piquenique.
Peggy Sauer representou a Oldsmobile com a perua Oldsmobile Fiesta Carousel, em azul metálico com interior combinando. O interior foi projetado pensando nas crianças e apresentava um tabuleiro de jogo magnético que podia ser fixado na parte traseira do banco dianteiro. Sauer colocou porta-guarda-chuvas nas portas dianteiras e controles das travas das portas dos bancos traseiros e interruptores das janelas no painel, para controle dos pais e segurança das crianças.
Sue Vanderbilt representou a Cadillac com dois carros. O conversível Saxony tinha acabamento em verde-acinzentado metálico, com interior forrado de tecido e couro combinando, que apresentava bolsos de armazenamento nas costas dos bancos. Ela também fez um coupe Eldorado Seville chamado Baroness com capota de vinil preto, que tinha um interior personalizado com carpete e estava equipado com um telefone.
A GM ofereceu uma importante plataforma de lançamento para as designers, em uma época na qual as mulheres raramente recebiam cargos de design de alto nível nas corporações. Porém, o trabalho trouxe inúmeras dificuldades. As designers eram fotografadas como modelos e relegadas a segundo plano em relação as suas responsabilidades, elas não tinham acesso ao departamento de design exterior dos veículos e também possuíam barreiras em seu próprio departamento uma vez que somente homens trabalhavam em determinados hardwares, como o painel de instrumentos. Além disso, as mulheres tinham que lidar com as zombarias de seus colegas homens e com a equipe de relações públicas que cometiam o equívoco de divulgar suas funções como decorar, selecionar tecidos, costurar e desenvolver produtos voltados para o público feminino, quando na verdade o trabalho destas designers era muito mais complexo. Na realidade, as designers estavam projetando portas, assentos, volantes, maçanetas e diversos outros itens voltados para o público geral. Inclusive, esse era outro aspecto que incomodava essas designers, o apelido de “donzelas do design”, pois não queriam ser vistas como estilistas e sim como designers, coo profissionais que produziam produtos para homens e mulheres. O departamento de relações públicas promoveu as designers como decoradoras, afirmando que elas jogavam tecidos e escolhiam cores para os interiores dos automóveis, quando realizavam o mesmo trabalho que homens (Frankman, Raphael, 2016). Apesar de tensionar o lócus de decoração – da casa para os automóveis -, as mulheres dificilmente atuavam no projeto “global” de criação de carros, sendo limitadas aos seus detalhes (Fiell, Fiell, 2019).
Após o Autoshow de 1958, Harley J Earl se aposentou de seu cargo e seu sucessor afirmou que não suportaria ter designers mulheres trabalhando com seus designers homens e, assim, o grupo de curta duração foi dissolvido. Jayne Van Alstyne permaneceu na empresa por 14 anos e Suzanne Vanderbilt por 23 anos. Entre 1963 e 1965, Vanderbilt se afastou da empresa por um tempo para cursar um mestrado sobre metalurgia, com a expectativa de que isto pudesse ajudá-la no design de automóveis na GM. Quando ela retornou, porém, descobriu que havia sido rebaixada e levou cerca de quatro anos para obter alguma promoção. Em 1972 finalmente se tornou designer chefe do estúdio.
Os designs que encheram o salão de exposições da GM foram divulgados pela imprensa, com manchetes como “Dream Cars Pamper Girls”. Desviando a atenção do trabalho real que tinham em mãos, mas também levando para casa o equívoco de que as designers estavam projetando apenas para mulheres – e que suas responsabilidades eram diferentes ou menores do que as de seus colegas carregados de testes. O trabalho das designers levava em conta o uso prático dos carros e a segurança das crianças, os projetos incorporavam o uso dos veículos no mundo real. O trabalho das “Donzelas do Design” foi de grande contribuição para a indústria de automóveis e suas criações ecoam até os dias de hoje.
Referências
FIELL, Charlotte; FIELL, Clementine. Women in Design: from Aino Aalto to Eva Zeisel. Lonon: Laurence King Publishing, 2019.
VEIT, Rebecca. Celebrated ‘Damsels of design’. Core77. 22/03/2016. Disponível em:<https://www.core77.com/posts/49498/The-Story-Behind-GMs-Celebrated>
GENERAL MOTORS. Damsels of design: Harley Earl’s designing women. 21/09/2015. Disponível em:<https://www.motortrend.com/features/damsels-of-design-harley-earls-designing-women>
FRANKMAN, Ellen; RAPHAEL, T.J. The Damsels of Design: The Women who changed automotive history. The Takeaway. WNYC Studios. 11/04/2016. Disponível em:< https://www.wnycstudios.org/podcasts/takeaway/segments/gms-all-female-design-team> Acesso em: 02/06/2024.
Trabalho desenvolvido na disciplina de Teoria do Design 1 por Alexandre Cavalheiro, Bruno Torre, Gabriel Correa, Jonas Correa, Maria Heloísa de Queiroz, estudantes do curso de Bacharelado em Design da UTFPR, com a colaboração e revisão de Lindsay Cresto.