Texto: Maureen Schaefer França a partir de > STRATIGAKOS, Despina. Women and the Werkbund: Gender Politics and German Design Reform, 1907-14. In: Journal of the Society of Architectural Historians, Vol. 62, No. 4 (Dec., 2003).
1. Introdução
Discursos, práticas e materialidades moldados no contexto da escola alemã Bauhaus (1919-1933) influenciaram modos de sentir-pensar-fazer design em diversas partes do mundo. Apesar de a escola defender, inicialmente, que não deveria existir distinção de raça nem de “sexo”, o pacto patriarcal posto em ação por Walter Gropius – que atuou como o primeiro diretor da escola entre os anos de 1919 e 1925 – e outros mestres estabeleceu que ao ingressarem, mulheres fossem encaminhadas ao ateliê de tecelagem. Para eles, elas poderiam “prejudicar” os princípios estéticos da escola, tornando-a excessivamente “decorativa”. Ou seja, Gropius considerava a atuação das mulheres em outras oficinas um risco aos princípios formais da Bauhaus (Campi, 2010).
Em 1910, antes de atuar como diretor da Bauhaus, Walter Gropius se tornou membro da Deutscher Werkbund (Liga Alemã do Trabalho), fundada em 1907, tendo sido possivelmente influenciado pelas teorias e práticas discutidas pela respectiva instituição. Assim como na Bauhaus, assimetrias de gênero também atravessaram debates e projetos realizados na Werkbund, restringindo/desvalorizando a trajetória de mulheres designers e arquitetas. O apagamento da atuação feminina na Werkbund é notável em obras como “Uma introdução à história do design”, de Rafael Cardoso, “Design – uma introdução: o design no contexto social, cultural e econômico”, de Beat Schneider, e, inclusive, no catálogo da exposição “Deutscher Werkbund – 100 anos de arquitetura e design na Alemanha”, realizada no Centro Cultural São Paulo em 2014.
Sendo assim, a partir do artigo “Mulheres e a Werkbund: política de gênero e reforma do design alemão, 1907-14”(1)- publicado em 2012 pela historiadora canadense Despina Stratigakos – abordo questões de gênero que atravessaram discursos, práticas e materialidades da Werkbund, como também a atuação de algumas mulheres da respectiva confederação no campo do design e da arquitetura. Para isso, discuto inicialmente a “má fama” dos produtos alemães nas Exposições Universais e, em seguida, a suposta “ameaça feminina” do kitsch à reputação do design alemão. Também apresento alguns homens e algumas mulheres que fizeram parte da Werkbund; algumas teorias de reforma do design da Werkbund sob a ótica de gênero; e, por fim, a criação da Casa da Mulher para a exposição realizada pela Werkbund na cidade de Colônia em 1914.
2. A má fama da Alemanha nas Exposições Universais
Entre meados do século XIX e início do século XX, as Exposições Universais (2) costumavam exibir produtos industriais, artefatos artesanais, obras de arte, projetos e maquinários de diversos países, além de artigos “exóticos” das colônias. Nesta perspectiva, as exposições também funcionavam como mostruários de novos produtos, atuando como vitrines do suposto “progresso” (Pesavento, 1997).
Financiadas, em grande parte, pelos setores abastados, as exposições podem ser compreendidas como autorrepresentações da ideologia burguesa, ocultando, não raras vezes, desigualdades econômicas, práticas neocolonialistas e a exploração de mão-de-obra. Uma das estratégias para dissimular os conflitos sociais presentes nos diversos países foi o nacionalismo. Sendo assim, a ideia de “nação”, uma comunidade imaginada, estava articulada à tentativa de eclipsar/fazer esquecer desigualdades de classe, gênero, raça etc. (Pesavento, 1997).
As Exposições Universais também funcionavam como competições internacionais, por meio das quais os países poderiam comparar suas realizações. Ou seja, no contexto do capitalismo industrial, a concorrência internacional presente nas exposições era uma forma de disputar novos mercados e ampliar os existentes (Pesavento, 1997). Nesta conjuntura, em 1876, o relator oficial alemão da Exposição Internacional da Filadélfia (EUA), afirmou que a “maior derrota da Alemanha” era uma consequência do lema “barato e ruim” (Selle apud Schneider, 2010, p. 46). Sendo assim, no contexto deste evento, foi atribuída a má fama aos produtos alemães, que comparados aos artefatos de outros países, foram rotulados como artigos de menor qualidade.
3. A “ameaça feminina” do kitsch à reputação do design alemão
Mesmo algumas décadas depois da Exposição Internacional da Filadélfia, a suposta “má qualidade” das criações alemães também era percebida em exibições nacionais. Na exposição da Secessão de Berlim, realizada em 1907 – mesmo ano da fundação da Werkbund, foi constatado que os artefatos exibidos no bazar realizado pela Associação de Emprego Feminino – tais como “bugigangas” e artesanatos – tinham “sucumbido” ao kitsch (3), sendo marcados pelo excesso, desordem e pela “confusão estilística”, flertando supostamente com o desejo de prazer do público consumidor (Stratigakos, 2003). O kitsch costuma ser associado a produções exageradas, ecléticas, banais, sinestésicas, de conteúdo sentimental, “desonestas” e mais ligadas ao prazer estético, exigindo supostamente pouco esforço intelectual para sua compreensão. Nesta perspectiva, o kitsch parece ter sido articulado a valores historicamente atribuídos às feminilidades, tendo sido moldado, nas primeiras décadas do século XX, como uma antítese do modernismo, sendo este, comumente, associado a produções masculinas (Moles, 1972; Greenberg, 2019; Cresto e França, 2024). Ademais, o gosto pelo kitsch foi classificado por membros e membras da Werkbund como uma “doença nacional” e como um vício tipicamente feminino, que estaria desintegrando o “espírito alemão” e que, portanto, deveria ser combatido (Stratigakos, 2003).

Sendo assim, por mais que existissem divergências na Deutscher Werkbund quanto à direção que a criação de produtos deveria seguir – por exemplo, Henry van de Velde (1863-1957), arquiteto e designer belga ligado ao Art Nouveau, advogando a favor da individualidade artística, e Hermann Muthesius (1861-1927), influente funcionário do Ministério do Comércio alemão, lutando a favor da padronização e da simplificação -, parecia existir certo consenso no que diz respeito ao emprego de valores como qualidade, honestidade e sobriedade – supostamente diametralmente opostos ao kitsch.
Vale comentar que muitas teorias acerca do kitsch tratam o fenômeno como algo pejorativo, depreciando suas características culturais. Neste sentido, Gert Selle e Peter Nelles questionam a categoria kitsch, afirmando: “Não existe kitsch, apenas design”. Para saber mais, só clicar no link.
4. Homens e Mulheres da Deustcher Werkbund
Conforme Schneider (2010), a má fama dos produtos alemães deveria ser corrigida mediante a criação de artefatos mais singelos e de maior qualidade, para que eles pudessem se tornar mais competitivos no mercado nacional e internacional. A Deutscher Werkbundfoi fundada em 1907 na cidade de Munique para cuidar dessa “missão”. Entre alguns dos seus fundadores estavam: os já citados Hermann Muthesius e Henry van de Velde como também Peter Behrens (1868-1940), designer alemão que passou a trabalhar na AEG (4) no mesmo ano da fundação da Werkbund; Joseph Olbrich (1867-1908), arquiteto do edifício da Secessão de Viena; Josef Hoffman (1870-1956), designer das Oficinas Vienenses; Bruno Paul e Richard Riemerschmid, arquitetos/designers alemães, entre outros (Fiell e Fiell, 2005; Schneider, 2010). Em 1908, a Werkbund contava com 500 membros homens e, em 1915, com 2000 (Stratigakos, 2003). Entre alguns dos seus membros, destacam-se dois dos futuros diretores da Bauhaus: Walter Gropius, que passou a fazer parte da instituição em 1910, e Mies van der Rohe, que ingressou em 1924, se tornando vice-presidente em 1926 (Markanto, 2025).
Entre alguns dos objetivos da Deutscher Werkbund estavam: a tentativa de mudar a reputação do design alemão; a cooperação entre arte, indústria e ofícios artesanais; a imposição de novos padrões técnicos e estilísticos; a promoção da unidade cultural alemã; a educação do público consumidor para exigir um produto de qualidade (Cardoso, 2000). Hermann Muthesius formulou motivos econômicos nacionalistas e imperialistas da Werkbund, advogando a favor de uma relação mais estreita entre produção industrial e estilo nacional:
Para ele e seus aliados, a padronização tanto técnica quanto estilística daria aos produtos alemães a supremacia no mercado internacional. (…). Além da motivação econômica, existia, portanto, um discurso de natureza claramente ideológico por trás de suas ações e este não diferia substancialmente dos argumentos avançados por uma série de outras organizações nacionalistas ativas na Alemanha, inclusive algumas de extrema direita (Cardoso, 2000, p. 111).
A Deutscher Werkbund foi composta pelas pessoas mais qualificadas nas artes, no artesanato e na indústria, sendo constituída, possivelmente, em boa parte, por membros das camadas abastadas (Schneider, 2010). Neste sentido, também é importante frisar que várias das estratégias da Werkbund foram delineadas no contexto da teoria liberal burguesa (Stratigakos, 2003). Profissionais das artes, design, publicidade e arquitetura fizeram parte dos quadros da instituição assim como jornalistas, teóricos, empresários e industrialistas.
De acordo com Stratigakos (2003), os setores femininos também fizeram parte dos quadros da Werkbund. Possivelmente, a atuação feminina na instituição estava associada às transformações de gênero ocorridas no período guilhermino (1888-1918), uma vez que mulheres – possivelmente das camadas médias – passaram a acessar o mercado de trabalho e o ensino superior, desafiando convenções tradicionais de feminilidades, aumentando tanto as esperanças quanto os receios com relação ao futuro da sociedade alemã. Discussões sobre a “diferença sexual”, o sufrágio feminino, a suposta santidade do casamento e da maternidade e a moralidade das “novas mulheres” permeavam a imprensa alemã.

Os membros da Werkbund só poderiam ser admitidos mediante convite da associação, o que demonstra o reconhecimento das mulheres na área do design. A presença feminina na Werkbund cresceu ao longo dos anos, visto que em 1910, a associação contava com 50 mulheres, correspondendo a 5% total dos membros e, em 1913, com 100 mulheres, representando 8%.

Conforme Stratigakos (2003), entre algumas membras que se destacaram na Werkbund estavam:
- Anna Muthesius (1870-1961) – designer de reforma de vestuário e companheira de Hermann Muthesius;
- Else Oppler-Legband (1875-1965) – designer de interiores e de vestuário, diretora de Departamento de Vestimentas Artísticas Femininas em Berlim. Alcançou uma alta posição na Werkbund, atuando como palestrante;
- Fia Wille (1868-1920), designer de interiores e de vestuário e coproprietária de uma das empresas de design de maior sucesso em Berlim;
- Gertrud Kleinhempel (data de nascimento e morte desconhecida) – designer de móveis;
- Margarethe von Brauchitsch (1865-1957) – artista têxtil e bordadeira renomada em Munique e figura líder do Jugendstil;
- Elisabeth von Hahn (data de nascimento e morte desconhecida)- diretora artística de vitrines;
- Lily Reich (1885-1947) – designer têxtil, de móveis e de interiores. Em 1912, ingressou na Werkbund, se tornando, em 1920, a primeira mulher a compor a diretoria da instituição. Também trabalhou com Mies van der Rohe, com quem chegou a ter um envolvimento romântico. Em 1927, na cidade de Estugarda, ambos organizaram a exposição da Werkbund intitulada “A moradia”. Também atuou como professora nos anos finais da Bauhaus.

Apesar de elas terem trabalhado no campo do design e da arquitetura, restrições quanto às áreas de atuação são notáveis, uma vez que a maior parte delas realizou projetos têxteis, de vestuário, de móveis, de interiores e de vitrine, ou seja, práticas ligadas ao espaço/trabalho doméstico, às manualidades e à aparência. Ademais, com exceção do design de móveis, as demais práticas costumam ser vistas como femininas, menos complexas, ingênuas e superficiais (Cresto e França, 2024).
Possivelmente, a restrição de áreas de atuação feminina está conectada ao processo de industrialização e de urbanização, que ganhou força na Europa no século XIX, transformando as relações entre homens e mulheres das camadas médias de diversos países ocidentais a partir do distanciamento entre as esferas pública e privada. Neste contexto, as mulheres passaram a ser restringidas à esfera privada, definida como o lugar da nutrição, do cuidado, do lazer e do descanso e os homens passaram a atuar, em maior medida, no espaço público caracterizado como o lugar do trabalho, da economia e da política. Desta maneira, surge uma nova classe feminina alfabetizada e ociosa, uma vez que da submissão dessas mulheres à domesticidade, dependia a aceleração do capitalismo industrial. Sendo assim, o valor das mulheres – que anteriormente, quando a família constituía uma unidade de produção e o trabalho feminino complementava o dos homens e vice-versa, residia em sua capacidade de trabalho, sagacidade econômica, força física e fertilidade – passou a se concentrar, em maior medida, no cuidado da aparência física, doméstico e familiar (Forty, 2007; Wolf, 2018; Llorente e Gutiérrez, 2020).
5. Teorias de reforma do design da Werkbund sob a ótica de gênero
De acordo com Stratigakos (2003), entre 1907 e 1914, estratégias para aperfeiçoar o design alemão foram delineadas por membros e membras da Werkbund entre outros críticos, cujos escritos circularam sobretudo em periódicos do período. A Werkbund debateu publicamente sua agenda de reformas, tentando defini-la tanto para seus membros quanto para o público em geral. Entre as pessoas que propuseram teorias do design, estavam sobretudo homens, mas também algumas mulheres, sendo estes dos mais diversos ramos de atuação: escritores, teóricos, artistas, designers, empresários, jornalistas, economistas, editores etc.
Visando combater a popularidade do kitsch, integrantes da Werkbund dirigiram seus esforços para espaços e hábitos do cotidiano, centrando-se na casa e nos bens de consumo que a preenchiam. Eles esperavam criar uma cultura de habitação moderna que pudesse unir “valores espirituais alemães” com as forças da industrialização. Visto que os arranjos internos das moradias e o consumo doméstico eram realizados, em grande medida, por mulheres alemãs, integrantes da Werkbund analisaram a atuação dos setores femininos como consumidoras, vendedoras e criadoras de artefatos do cotidiano. Pois, para alguns membros, as escolhas femininas tinham consequências nacionais (Stratigakos, 2003).
Nesta conjuntura, Karl Scheffler (1869-1951), crítico de arte e influente teórico da respectiva instituição, declarou no anuário da Werkbund de 1914: “a batalha da Werkbund é…uma campanha para alcançar uma nova razão masculina” (5). Sendo assim, a batalha pela renovação estética para alguns integrantes se tratava, na realidade, de uma “batalha de gênero”. Em contrapartida, outros membros defendiam que a reforma do design proposta pela Werkbund deveria considerar perspectivas femininas (Stratigakos, 2003).
Alguns anos antes, mais precisamente em 1900, Karl Scheffler havia publicado um livro chamado “Mulher e arte: um estudo” (6), no qual afirmou, em tom misógino e homofóbico, que mulheres que competiam com artistas homens, lutando para conquistar a “genialidade masculina”, se tornariam lésbicas e prostitutas. Seu livro pode ser compreendido como um alerta para impedir o avanço das mulheres “produtivas” (em vez de “reprodutivas”). Seus escritos influenciaram textos posteriores sobre mulheres designers e arquitetas escritos por outros membros da Werkbund (Stratigakos, 2003).

Em um ensaio escrito em 1907 pelo teórico austríaco Joseph August Lux (1871-1947), ele afirmou: “O atraso espiritual das mulheres é um dos maiores obstáculos espirituais com os quais o progresso deve lutar. Os homens são arruinados não tanto por mulheres más, mas por mulheres estúpidas.” (7). Para Lux, as mulheres compunham a maior parte da clientela do setor industrial voltado para o design do cotidiano e que a influência feminina era a causa de produtos mal fabricados. Pois, por meio das mulheres, que determinavam o gosto do público, o sentimentalismo ganhava força em diversos artefatos produzidos em massa. Contudo, o teórico também teceu críticas aos homens por renunciarem ao controle desse domínio, afirmando que por não entenderem nada sobre assuntos domésticos, os homens deixavam o cuidado do lar, do qual “depende a essência da cidade, da vida e, portanto, de quase tudo — para as mulheres, que geralmente entendem ainda menos”. (8). Em outras palavras, Lux repreendeu os homens por não fazerem nada para impedir suas esposas de abraçarem o kitsch. Entretanto, Lux acreditava que tanto homens quanto mulheres eram capazes de cair no sentimentalismo, visto por ele como um impedimento ao “progresso cultural” (Stratigakos, 2003).

No mesmo ano, em 1907, Fia Wille (1868-1920) – membra da Werkbund, designer de vestuário e de interiores e coproprietária, junto ao marido Rudolf, de uma das empresas de design de maior sucesso em Berlim – publicou um artigo no periódico feminino Die Welt der Frau (O Mundo das Mulheres), um pouco antes da fundação da Werkbund. Nele, abordando as vitrines, ela explicava às leitoras como diferenciar artigos que só visavam lucro por meio de uma moda espalhafatosa daqueles que focavam na utilidade. (9). Após a fundação da Werkbund, Wille continuou a usar a imprensa feminina como porta-voz da reforma do design, focando na educação do público consumidor feminino, alcançando, não raras vezes, mais mulheres do que as próprias publicações da Liga Alemã do Trabalho. Apesar da iniciativa de Fia Wille, Adolf Vetter (1867-1942), membro da Werkbund, afirmou em um ensaio, publicado em 1911 (10), que as mulheres seriam incapazes de discernir a qualidade dos produtos (Stratigakos, 2003), reiterando discursos misóginos.

Em 1909, ou seja, depois de Fia Wille e antes de Adolf Vetter, Else (Elisabeth) Warlich (1873-1942) (11) – escritora e esposa de Hermann Warlich (membro da Werkbund e crítico de design) – também publicou um ensaio dando relevo para o consumo feminino. O ensaio intitulado Deutsche Werkbund und die Frau (Deutscher Werkbund e Mulheres) foi publicado na edição inaugural de Das Werk (O Trabalho), primeiro periódico da Werkbund. No artigo, Else afirmou que mulheres consumidoras atuavam como arqui-inimigas do design alemão, uma vez que possuíam o gosto por imitações baratas, sendo as mulheres as únicas culpadas pelo “lixo doméstico” presente nas habitações modernas. Else também acionou teorias de “degeneração cultural”, presentes em discursos colonialistas da Alemanha, depreciando consumidoras ao compará-las a bárbaras que precisavam ser “civilizadas” pela Werkbund (Stratigakos, 2003). Nesta perspectiva, Else tensiona visões essencialistas, que tendem a reforçar ideias de que os setores femininos seriam naturalmente feministas e solidários e empáticos com as demais mulheres.
Em essência, o artigo de Else era um manifesto destinado a reorientar as energias da Werkbund para as mulheres consumidoras e vendedoras de artigos e artefatos domésticos, que deveriam ser instruídas. Para a escritora, a vendedora ideal – ou seja, como educadora do gosto do público consumidor – pertenceria à classe média “instruída”, sendo capaz de apresentar aos consumidores o que é bem-feito e “bonito”, reiterando elitismos e visões classistas. Vale comentar que homens instruídos e de classe média dificilmente aceitariam esse tipo de emprego visto como algo socialmente inferior (Stratigakos, 2003).
Em 1914, o economista suíço Wilhelm Wirz (1890-?) escreveu um ensaio sobre o impacto da “psique feminina” na criação de artefatos de qualidade, que foi publicado no periódico Wohlfahrt und Wirtschaft, sendo republicado depois em outros periódicos editados por membros da Werkbund tais como Deutsche Kunst und Dekoration e Innen-Dekoration (12). Citando o crítico de arte polonês Oscar Bie (1864-1938), Wirz afirmou que homens possuíam o órgão para a função e para a construção e as mulheres, por não possuírem este órgão, tinham maior necessidade de ornamentação. Citando Scheffler e Warlich, Wirz argumentou que o gosto ornamental das mulheres não tinha profundidade crítica ou construtiva, uma vez que elas era atraídas pela aparência e não pela “substância”. Para Wirz, cabia aos homens designers e arquitetos, o projeto da estrutura de artefatos e de habitações, e às mulheres, o acabamento, ou seja, a prática de suavizar a “dureza” com o talento feminino. Wirz encerrou seu ensaio com uma citação de Oscar Wilde: “Ela não tem nada de essencial a dizer, mas diz o não essencial com grande charme” (Stratigakos, 2003). Sendo assim, Wirz acionou discursos ligados ao determinismo biológico e ao binarismo de gênero, segundo os quais, homens seriam naturalmente capacitados a trabalhar com os aspectos funcionais/construtivos de um produto e as mulheres com os aspectos estéticos/decorativos.
Em 1912, os críticos tiveram uma oportunidade sem precedentes de avaliar as contribuições das designers femininas para o movimento de qualidade. O German Lyceum Club, uma associação profissional para mulheres, sediou uma exposição monumental em Berlim intitulada Mulher em Casa e nas Profissões. Membras da Werkbund como Else Oppler-Legband e Fia Wille estavam entre as principais organizadoras do evento. Três interiores completos de moradias criados para as classes alta, média e baixa atraíram atenção especial. A exposição declarou publicamente a nova relação entre mulheres, design profissional e o ambiente doméstico. Objetos exibidos foram selecionados cuidadosamente, visto que a exposição visava demonstrar a determinação das mulheres em promover a eficiência, a qualidade e um conhecimento profundo. A ampla cobertura da imprensa nacional e local, como também a presença de cerca de 500.000 visitantes, trouxeram holofotes para as designers expositoras (Stratigakos, 2003).
Apesar disso, julgando o trabalho de algumas colegas, Paul Westheim (1886-1963) – crítico alemão, editor, historiador de arte e membro da Werkbund – argumentou que as mulheres tinham uma “predisposição improdutiva”, ou seja, que elas eram incapazes de conceber de uma maneira mais profunda e original. Para ele, as produções femininas destinadas ao “mercado” eram de baixa qualidade, pois até então, costumavam ser direcionadas à própria casa, aos familiares ou ao círculo de amigos, não sendo realizadas supostamente com muita exigência. Fazendo suas rondas na exposição, o olhar de falcão de Westheim detectou a presença persistente da “mulher diletante”. Para ele, o diletantismo – dedicação a algo de forma descompromissada; hobby; passatempo – estava articulado à “tendência feminina” ao kitsch. “Pequenos ornamentos miseráveis” foram associados por ele, inclusive, ao “kitsch de solteironas” (13) (Stratigakos, 2003). Ou seja, um discurso misógino de imbecilização de mulheres solteiras e de naturalização do casamento como sucesso feminino. Contudo, isso não quer dizer que a crítica de Westheim fosse totalmente injustificada, pois com milhares de objetos em exposição, uma gama de qualidade inferior era inevitável.
A educação feminina no campo do design era considerada por alguns críticos como a chave para a “reabilitação” das mulheres com relação ao kitsch e ao diletantismo. Em 1908, Karl Gross (1869-1934) e, em 1909, Margarete von Brauchitsch – ambos membros da Werkbund – defenderam treinamento igual para homens e mulheres. Inclusive, havia uma preocupação com relação aos obstáculos que dificultavam o acesso de mulheres a estágios. Um artigo da época chegou a relatar: “mesmo mulheres artisticamente talentosas, podem… não conseguir nada” (14) (Stratigakos, 2003).
Outros eram céticos de que a educação levaria as mulheres do diletantismo à qualidade. Scheffler acreditava que o diletantismo era o estado artístico natural (e único) das mulheres. Paul Klopfer (1876-1967), diretor do Royal Building College em Weimar e um crítico influente, tinha uma visão semelhante, denunciando em um ensaio (15), publicado em 1911, que moças tinham o hábito perturbador de se matricular em Escolas de Artes Aplicadas pouco antes do Natal para fazer seus presentes sob a supervisão de um professor. O ensaio de Klopfer, que inicialmente parecia ser uma defesa de estudantes femininas “sérias”, buscava, na realidade, manter as mulheres fora das Escolas de Artes Aplicadas, e a imagem da diletante foi habilmente utilizada para este propósito. Ademais, tanto Kloper quanto Scheffler achavam que as mulheres eram incapazes de entender os princípios arquitetônicos e de realizarem trabalhos originais, bem estruturados e complexos (Stratigakos, 2003).
Naqueles anos, a atuação feminina foi regulada/restringida por diversos setores sociais. Enquanto, alguns setores conservadores defendiam a atuação das mulheres como estilistas – argumentando que tal profissão era coerente com as práticas domésticas e com os “valores femininos” que exploravam um “espírito alemão mais antigo e puro”– outros valorizavam as mulheres “reformadas” em oposição às “diletantes”, excluídas da elite do design. Nesta conjuntura, várias designers lutaram para se distanciar da “mancha do diletantismo” (Stratigakos, 2003).
Homens foram compreendidos, em grande medida, como os indivíduos naturalmente capazes de alcançar os objetivos do movimento de reforma do design. A qualidade e a objetividade foram definidos como valores masculinos em contraposição às “falhas femininas”: o kitsch e o diletantismo. Sendo assim, a chamada “boa forma” foi entendida naqueles anos como o produto “natural” dos homens. Com base na “nova razão masculina” da Werkbund, portanto, os homens poderiam reivindicar para si o design cotidiano (Stratigakos, 2003).
6. A Casa da Mulher, Colônia (1914)
A exposição da Deutscher Werkbund, realizada na cidade de Colônia em 1914, buscou exibir a qualidade da arquitetura e do design alemães a partir da mostra de artefatos e de modelos arquitetônicos, focando tanto no público nacional quanto internacional (Cardoso, 2000). O Salão de Festivais, de Peter Behrens; o Teatro, de Henry van de Velde; a Fábrica e Edifício de Escritórios, de Walter Gropius e Hannes Meyer; e a Casa da Mulher (Haus der Frau) foram algumas das edificações projetadas e construídas para a exposição. A Casa da Mulher diz respeito ao único pavilhão feminino, cuja exposição foi organizada por Anna Muthesius, presidenta; Else Oppler-Legband, diretora administrativa; e Lilly Reich, coordenadora geral. A Casa da Mulher deveria exibir obrigatoriamente artefatos projetados por mulheres e que procurassem associá-las à criatividade e à intelectualidade e não apenas à execução (Stratigakos, 2003).


Por meio do projeto da Casa da Mulher e dos objetos exibidos no respectivo pavilhão, as mulheres buscaram se distanciar do diletantismo; eliminar a “superficialidade” e o excesso de ornamentos; e promover a eficiência e a qualidade – atributos da Werkbund. Os artefatos selecionados passaram por um exame criterioso, além disso, as mulheres procuraram não competir com os homens, mas ser um complemento deles, preservando seu pressuposto “dom feminino” (Stratigakos, 2003).
A arquiteta Margarete Knüppelholz-Roeser (1886-?) venceu o concurso do projeto do edifício, o qual foi desenhado a partir de linhas retas, poucos ornamentos (apenas as cerâmicas utilizadas na moldura das entradas), sendo simples e “sem pretensão”. Infelizmente, o edifício foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial. Entre alguns dos artefatos exibidos no pavilhão estavam: tapeçarias, bordados, roupas femininas e infantis, joias, brinquedos, bonecos, móveis, design de interiores (projeto de biblioteca e sala de jantar, por exemplo), livros, cartazes, pinturas, fotografias (Stratigakos, 2003) – reiterando campos de atuação historicamente articulados às feminilidades.








Inclusive, duas das organizadoras – Anna Muthesius e Else Oppler-Legband – eram, naqueles anos, as líderes do movimento de modernização do vestuário feminino na Alemanha. Devido ao movimento feminista e a maior tomada de espaço pelas mulheres das camadas médias – nas universidades e no mercado de trabalho -, artistas, estilistas, nudistas, médicos e sufragistas passaram a advogar a favor de um vestuário que libertasse o corpo das mulheres das restrições do espartilho. Sendo assim, os chamados “vestidos reforma” eram, geralmente, peças largas e com menos ornamentos. Para alguns teóricos da Werkbund, a moda estava associada diretamente com o capitalismo, sendo compreendida como um “vício feminino” e como uma “escravização das mulheres alemãs” ao gosto parisiense. Nesta perspectiva, em seus escritos, Anna Muthesius argumentou que a reforma do vestuário era, na realidade, uma antimoda, uma vez que incentivava a procura das mulheres por um estilo pessoal.


A Casa da Mulher recebeu críticas positivas e negativas. Entre as críticas positivas, Fritz Stahl, um crítico de arte, afirmou que o respectivo pavilhão era uma das melhores exposições da Werkbund. WilhelmWirz, economista suíço supracitado, argumentou que as mulheres tinham finalmente conseguido desenvolver o “órgão funcional” masculino – uma crítica machista disfarçada de elogio. Wilhelm Schafer, editor do periódico Rheinlande e membro da Werkbund, celebrou a originalidade unicamente do trabalho têxtil exposto no pavilhão, reiterando estereótipos de gênero no que diz respeito à atuação feminina no campo do design. Outros críticos elogiaram às mulheres por terem se emancipado do diletantismo.
Com relação às críticas negativas, vários críticos afirmaram terem tido dificuldade em conceber a edificação como um “pavilhão feminino” – embora o edifício, a priori, pareça não ter sido projetado com esta intenção. Joseph Löttgen afirmou que o pavilhão não possuía “graça feminina”, sendo esmagadoramente masculino. Para parte das visitantes, o edifício não tinha “encanto”.Para Peter Jessen, membro da Werkbund, a mulher designer serviria melhor à pátria quando atuasse de acordo com a sua “natureza”, ou seja, com bordado e vestuário, mas não com arquitetura. Para vários dos críticos, parecia existir uma “incompatibilidade” entre as mulheres e o modernismo (Stratigakos, 2003).
7. Considerações Finais
A missão da Werkbund de melhorar a qualidade dos produtos alemães no mercado nacional e internacional foi perpassada por questões de gênero. Artefatos kitsch, apesar de também serem consumidos e produzidos por homens, foram articulados, em grande medida, ao público feminino. Associado a produções exageradas, ecléticas, banais, “desonestas”, de conteúdo sentimental e ligadas ao prazer estético, o kitsch parece ter sido articulado a valores historicamente atribuídos às feminilidades, tendo sido moldado, nas primeiras décadas do século XX, como uma antítese do modernismo, sendo este, comumente, associado a produções masculinas.
Perspectivas misóginas são perceptíveis não apenas nos discursos de homens, mas nos de mulheres também, tensionando visões essencialistas, segundo as quais os setores femininos seriam “naturalmente” feministas. Para serem aceitas pela “elite do design alemão” e acessarem mais espaços, parte das mulheres se ajustaram a padrões masculinos de design, naturalizando binarismos de gênero ao procurarem não competir com os homens, mas atuarem como “complemento” deles. Nesta perspectiva, setores conservadores hierarquizaram as designers entre “mulheres diletantes” e “mulheres reformadas”. No entanto, mesmo as mulheres, que se afastaram da ornamentação – em consonância com os preceitos da Werkbund -, abraçando a “boa forma”, não saíram ilesas do escrutínio masculino: discursos machistas disfarçados de elogio e congratulações restritas a áreas de atuação “naturalmente” femininas.
Ademais, para alguns críticos, mulheres não eram compatíveis com o modernismo. Sendo assim, se adequando ou não às normas de design da Werkbund, mulheres foram, em alguma medida, julgadas, refreadas e depreciadas, não parecendo se tratar da sua capacidade de aperfeiçoamento, mas de algo milenar: a tentativa de controle sobre os corpos femininos – investida replicada, anos depois, por Gropius e por outros mestres da Bauhaus. Mas apesar das opressões, algumas mulheres designers e arquitetas ameaçaram a ordem vigente, resistindo por meio de alianças, palestras, empresariado, criação e execução de projetos.
Referências
BAUHAUS KOOPERATION. Ludwig Mies van der Rohe. Disponível em: <https://bauhauskooperation.de/wissen/das-bauhaus/koepfe/biografien/biografie detail/person-1438>. Acesso em: 28/02/25.
CAMPI, Isabel. Diseño e Historia: tempo, lugar y discurso. México: Editorial Designio, 2010.
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Notas de rodapé
- A autora dá relevo para o período compreendido entre a fundação da Werkbund e a realização da sua grande exposição de design em Colônia, em 1914.3.
- A primeira Exposição Universal foi realizada em 1851 no Palácio de Cristal, na Inglaterra.
- O kitsch – termo oriundo da palavra alemã kitschen/verkitschen (que significa trapacear, vender alguma coisa em lugar de outra) – é um fenômeno europeu do início do século XVIII. Em torno da década de 1860, a palavra kitsch adquiriu o significado de falsificação. Possivelmente, o valor de desonestidade atribuído ao kitsch está associado, em parte, a algumas práticas realizadas no contexto da Revolução Industrial, quando produtos industriais foram comercializados com certos tipos de ornamentos e acabamentos, de modo que se passassem por artigos artesanais, a fim de evocarem ideias de maior qualidade e de maior valor. Em suma, o termo kitsch costuma ser empregado, historicamente, pelo senso comum para designar o “mau gosto artístico” assim como produções de qualidade inferior. Também estaria articulado às produções falsificadas, exageradas e de conteúdo sentimental (Moles, 1972).
- Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft, em português, Companhia Geral de Eletricidade.
- SCHEFFLER, Karl. Gute und schlechte Arbeiten im Schnellbahngewerbe, Der Verkehr. Jahrbuch des Deutschen Werkbunders 3 (1914), 42; trans. In Schwartz, The Werkbund, 229, n. 135.
- Título original: Die Frau und die Kunst: Eine Studie.
- Artigo publicado na revista de reforma do design Die Hohe Warte, inclusive, editada por Lux. Em 1909, a revista mudou de nome, passando a ser chamada de Das Werk (O Trabalho), a primeira publicação oficial da Werkbund.
- LUX, Joseph August. Erziehung zur Sentimentalität, Die Hohe Warte 3 (1906-7), 25.
- WILLE, Fia. Das Schaufenster als Erzieher, Die Welt der Frau 26, no. 16 (1907), 251.
- VETTER, Adolf. Die Staatsbiirgerliche Bedeutung der Qualitatsarbeit, Die Durchgeistigung der deutschen Arbeit. Ein Bericht vom deutschen werkbund (Jena, 1911), 14-16.
- Curiosamente, o nome de Else Warlich não consta na lista de membros da Werkbund.
- WIRZ, Wilhelm. “Frau und Qualität”. Wohlfahrt und Wirtschaft 1, no. 4 (1914), 196-200; “Die Frau und die Qualitäts-Bewegung”, Innen-Dekoration 25 (1914), 391-98; “Dekorative oder konstruktive Gestaltung”, Deutsche Kunst und Dekoration 18, no. 12 (1915), 426-27.
- WESTHEIM, Paul. “Die Frauenausstellung”, 271.
- WOLFF. “Die Frau als Kunstgewerbe”, 53.
- KLOPFER, Paul. “Die Frau und das Kunstgewerbe”, Kunstwart 24, n. 15 (1911).