Mulheres na tipografia: freiras & viúvas entre outras familiares de mestres tipógrafos (parte 2)

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O campo da tipografia abarca diversos tipos de práticas, tais como design de tipos, fundição de tipos, composição, impressão e encadernação. As mulheres estiveram envolvidas de diversas maneiras na imprensa ao longo da história, atuando como impressoras, compositoras, encadernadoras, ilustradoras e designers de tipos. Na Europa, sabe-se que pelo menos desde os tempos de Gutenberg, os setores femininos atuaram no campo da impressão (BOOKMAKING ON THE DISTAFF SIDE, 1937). No entanto, boa parte dos livros sobre história do design nos levaria a acreditar que elas não existiram.

Em torno de 600 d.C. – ou seja, séculos antes da invenção de Gutenberg -, textos passaram a ser impressos na China por meio da gravação de ideogramas em blocos de madeira. No século XI, o artesão chinês Bi Sheng, que conhecia as dificuldades envolvidas na criação de blocos de madeira, inventou a primeira tecnologia de impressão de tipos móveis, que se valia do uso de peças de argila com ideogramas gravados em alto relevo para imprimir textos. No entanto, desconhecemos referências para afirmar se mulheres estiveram envolvidas em tais processos de impressão (HASHIMOTO, 1992; VIDEO CHINA TV, 2017).

O Sutra do Diamante, que contém um diálogo com o Buda, é o livro impresso mais antigo do mundo. Trata-se de um rolo com cerca de 4,8 m de comprimento. Esta cópia xilogravada data de 868 e está localizada na Biblioteca Britânica (LYONS, 2011).
A primeira tecnologia de impressão com tipos móveis foi inventada pelo artesão chinês Bi Sheng no século XI.

No continente europeu, parte dos homens buscaram restringir o acesso das mulheres às guildas, tornando o ofício da tipografia uma prática, em grande medida, masculina entre os séculos XV e XVIII (PINHEIRO, 1990; WIKANDER, 2021). Além disso, muitos utilizavam o fato de os primeiros tipos de metal serem confeccionados em chumbo como justificativa para manter as mulheres distantes das oficinas e prensas, uma vez que o material aumentava os riscos de aborto e prejudicava a fertilidade (MIDORI, 2016). Contudo, o material também era nocivo para homens, visto que o envenenamento por chumbo era uma doença comum entre os tipógrafos (WIKANDER, 2021). No entanto, existiam exceções com relação à atuação de mulheres em algumas guildas. Pois, esposas tinham permissão para ingressar nas mesmas guildas que seus maridos, algo que na maioria dos casos não era permitido para mulheres ainda não associadas por matrimônios entre outras formas de conexões familiares (BOARDLEY, 2014).

O trabalho de setores femininos, ainda neste contexto, parece ter sido permitido também em outros âmbitos: conventos e oficinas tipográficas familiares. No século XV, as mulheres costumavam ter possibilidades restritas para construir uma carreira. Poucas, exceto aquelas das classes sociais mais abastadas, poderiam ter acesso à educação, embora universidades ainda não admitissem mulheres. A visão predominante – patrocinada pelo Estado e pela Igreja – reforçava a ideia de que mulheres deveriam evitar a vaidade, a ambição e a literatura em favor do trabalho no campo, do trabalho doméstico, do cuidado familiar e da oração. Sendo assim, as mulheres estavam limitadas, não raras vezes, a três opções: casamento, vida monástica e prostituição (BOARDLEY, 2014).

Na maioria das vezes, as melhores posições nos conventos estavam abertas apenas para mulheres das classes favorecidas. Mulheres menos abastadas costumavam realizar apenas trabalhos domésticos. Antes da introdução da impressão em meados do século XV, parte das mulheres estavam envolvidas na produção de manuscritos em conventos atuando como copistas, miniaturistas e iluminadoras. Mas após a invenção da impressão com tipos móveis de metal, freiras também passaram a imprimir livros. De 1476 a 1484, por exemplo, freiras dominicanas do Sanctum Jacobum de Ripoli, localizado em Florença, imprimiram vários livros na gráfica do convento. Sabe-se que entre 1481/1482, uma freira chegou a trabalhar como compositora, diagramando uma edição de Il Morgante, obra do poeta italiano Luigi Pulci (BOARDLEY, 2014; USANDIZAGA, 2018).

Página impressa por freiras no Sanctum Jacobum di Ripoli (Florença, 1478).

Desde meados do século XV até ao início do século XIX, a imprensa foi fundamentalmente uma indústria familiar em diversos países europeus. Pois, boa parte dos estabelecimentos calcados na tipografia manual era caracterizada pela escassez de meios, sendo assim a participação de membros da família era essencial para o funcionamento do negócio (BOARDLEY, 2014). Geralmente, os mestres impressores, que dirigiam tais oficinas, trabalhavam auxiliados por sua esposa, filhos, filhas e irmãs. Ou seja, mulheres participaram das primeiras indústrias de impressão (PINHEIRO, 1990; LUPTON, 2021). Os familiares do proprietário da tipografia, por sua vez, passavam a ser aprendizes, sendo treinados pelo mestre. Nesta perspectiva, mulheres cumpriam suas obrigações nos negócios da família da mesma forma que cumpriam os afazeres domésticos. Nesse contexto, pode-se supor que filhas e esposas dos tipógrafos estivessem familiarizadas com os trabalhos mecânicos do ofício (BOARDLEY, 2014). Os familiares do mestre eram chamados de confrades “de passagem” ou “temporários”, visto que trabalhavam conforme a solicitação de encomendas. Algumas vezes, o mestre impressor contratava um trabalhador de confiança para cargo fixo, geralmente, um homem que poderia se tornar seu genro ou se casar futuramente com sua esposa após sua morte (PINHEIRO, 1990).

Gravura francesa do século XVIII, na qual mulheres foram retratadas trabalhando em uma oficina, colocando papéis para secar. Publicado na Enciclopédia pictórica de ofícios e da indústria de Dennis Diderot. Fonte: https://www.alamy.com/18th-century-illustration-of-a-store-where-paper-is-drying-after-sizing-published-in-a-diderot-pictorial-encyclopedia-of-trades-and-industry-manufa-image362121882.html

Com relação à atuação de mulheres em vista de conexões familiares, sabe-se que em Mântua, norte da Itália, por volta de 1476, Estellina Conat, esposa do médico, impressor e rabino Abraham Conat esteve envolvida na composição de um dos primeiros livros impressos em hebraico (BOARDLEY, 2014). Ainda na Itália, em meados do século XVI, Girolama Cartolari foi uma das pouquíssimas mulheres a assinar suas gravuras. Ela trabalhava em Roma na gráfica da família, mas só pode assinar seu nome após o falecimento do marido (USANDIZAGA, 2018).

Na cidade de Augsburg, no sul da Alemanha, em torno de 1484, Anna Rügerin, enteada do impressor Johann Bämler, a priori, foi a primeira mulher a adicionar seu nome ao colofão de um livro como sua impressora. Após a morte de seu marido, Thomas, Anna teria assumido o controle total da gráfica da família (BOARDLEY, 2014).

Colofão de Sachsenspiegel: Landrecht. Augsburg: Anna Rügerin, 22 de junho de 1484. ISTC: ie00024000; Fol. 155v. Imagem cortesia de Deutsche Forschungsgemeinschaft.

Impressoras viúvas costumavam ter permissão para continuar a administrar o negócio dos falecidos para sustentar os filhos. Em Paris, durante os anos 1500, cerca de cinquenta viúvas operavam gráficas. Geralmente, eram filhas de impressores que aprenderam o negócio da família e se casaram com impressores (LUPTON, 2021). A francesa Charlotte Guillard (148?-1557) dirigiu a imprensa Soleil d’Or, localizada em Paris, na qual trabalhava desde 1502. Em 1518, após a morte do marido, tornou-se uma das impressoras mais importantes do Quartier Latin, estando à frente da empresa por várias décadas. No entanto, cabe salientar que ela não foi a primeira impressora de Paris, mas a primeira mulher com uma carreira consolidada (USANDIZAGA, 2018). A parisiense Yolande Bonhomme (1490-1557) cresceu trabalhando na gráfica de seu pai. Anos mais tarde, ela se casou com o impressor Thielman Kerver, cuja gráfica herdou em 1522 ao se tornar viúva. Ela administrou o negócio por cerca de 35 anos até falecer em 1557. Yolande publicou livros em toda a França, bem como na Alemanha, Suíça e Holanda (LUPTON, 2021).

Charlotte Guillard, Soleil d´Or
Yolande Bonhomme, página de título e detalhe da marca da oficina impressora, 1541. Fonte: https://blogs.loc.gov/law/2018/08/female-printers-in-sixteenth-century-paris/

As imprensas da Espanha e da Nova Espanha (que corresponde hoje, em parte, ao atual México) nos oferecem exemplos de que a participação feminina foi decisiva para a continuidade dos estabelecimentos e para o crescimento de boa parte dos negócios tipográficos. De acordo com colofões de impressos espanhóis preservados, Isabel de Basilea teria sido a primeira mulher a se dedicar à arte tipográfica na Espanha. Isabel era filha do alemão Fadrique de Basilea, um dos pioneiros na introdução da imprensa na Espanha. Em 1517, Isabel se casou com Alonso de Melgar, um dos oficiais do ateliê tipográfico, tornando-se diretor em 1519 após o falecimento de Fadrique. Após a morte de Melgar, Isabel executou algumas impressões, sendo mencionada nas páginas de tais impressos como a “viúva honesta” de Alonso Melgar. Após o falecimento de Melgar, Isabel se casou com Juan de Junta, membro da famosa dinastia de impressores florentinos, que passou a dirigir o estabelecimento originalmente fundado pela família de Basilea. Matrimônios sucessivos de viúvas com impressores foram uma prática comum no período (GRAVIER e LÓPEZ, 2011).

Juan Pablos abriu o primeiro estabelecimento tipográfico no México em 1539, acompanhado da esposa Jerónima Gutiérrez. Quando Pablos faleceu, provavelmente em 1560, foi ela quem herdou a oficina e nela continuou a trabalhar por alguns anos. Validando o testamento que lhe confiava os filhos e a tornava titular dos bens e da tipografia, Jerónima Gutiérrez alugou a oficina para Pedro Ocharte, o terceiro tipógrafo do México. Este vínculo foi reforçado em torno de 1562 com o casamento de Pedro com María de Figueroa, filha de Juan Pablos. Ao ficar viúvo, Pedro casou-se pela segunda vez com María de Sansores (ou Sansoric), que participou ativamente do trabalho editorial. Ao se tornar viúva, em 1592, María de Sansoric assumiu a oficina, mas só chegou a realizar impressões dois anos depois. Em 1597, ela mudou sua oficina para o Colégio de Tlatelolco, onde trabalhou com a colaboração de Cornelio Adrián César, que acompanhou várias viúvas em suas oficinas (GRAVIER e LÓPEZ, 2011).

Na Grã-Bretanha, entre 1550 e 1650, cerca de 130 mulheres estiveram envolvidas na produção ou comércio de livros, mas muito poucas poderiam assinar suas obras. O casal britânico Elizabeth Harris Glover (1600-1643) e Joseph Glover viram uma oportunidade: abrir a primeira oficina tipográfica das 13 colônias inglesas. Durante a viagem, Joseph Glover faleceu. Sendo assim, em 1639, Elizabeth liderou a fundação da primeira gráfica da América do Norte, a Cambridge Press, imprensa vinculada ao Harvard College, hoje Harvard University (USANDIZAGA, 2018).

Nascida em 1696 na cidade de Boston, Ann Smith Franklin foi autora, impressora e editora na colônia americana de Rhode Island. Ela se casou com o impressor James Franklin e herdou o negócio da família em 1735, quando ele faleceu. Ela se tornou a impressora oficial da Assembleia Geral da colônia, publicando também romances, sermões, textos humorísticos e sobre previsões do tempo e seu próprio jornal, o Newport Mercury. Em 1741, ela passou a comercializar a popular publicação Poor Richard’s Almanac escrita por seu famoso cunhado, o cientista e inventor Benjamin Franklin, aprendiz na loja da família dela quando adolescente. As filhas de Ann Smith eram habilidosas em compor tipos e seu filho ajudava a administrar o negócio. Um homem negro, que foi escravizado pelos Franklins, também trabalhava na gráfica (LUPTON, 2021).

Impresso por Ann Smith Franklin. Fonte: https://aminoapps.com/c/world-history/page/item/ann-smith-franklin/JglM_BYsMIVWqNbmojQ4xM7BYg7RlRQRgp
Ilustração: Jennifer Tobias. Fonte: Lupton (2021).

Durante o século XVII, embora tenha havido um aumento significativo de mulheres atuando em oficinas de impressão na Espanha e na Nova Espanha, não parece que suas condições de trabalho tenham melhorado no período. Apesar disso, muitas das impressoras permaneceram ativas por várias décadas. (GRAVIER e LÓPEZ, 2011). Neste período, na cidade Donostia-San Sebastián (Espanha), Francisca Aculodi (?-1715) trabalhou em uma tipografia familiar. Seu marido, Martin Huarte, foi nomeado o primeiro impressor oficial da província em 1668. Após sua morte em 1678, foi permitido que Francisca continuasse na tipografia com as mesmas condições e salário de seu marido, até que um de seus filhos assumisse o cargo. Ela se tornou então responsável pela gráfica, assinando seu nome em várias edições do periódico “Noticias principales y verdadeiras”, entre 1687 e 1689. Neste periódico, foram traduzidas notícias de um jornal de Bruxelas e acrescentadas notícias locais, o que pode sugerir que Francisca Aculodi teria sido a primeira jornalista conhecida da história. Em 1691, ela entregou a imprensa ao seu filho Bernardo (USANDIZAGA, 2018).

Francisca Aculodi, Noticias Principales y Verdaderas.

No século XVIII, há exemplos de imprensas familiares, em funcionamento durante várias gerações, que chegaram ao seu máximo esplendor em mãos de mulheres tanto na Espanha e quanto no México. Ademais, a atuação de mulheres na tipografia parece ser mais notável no México quando comparada ao Peru e às regiões do Rio da Prata, lugares onde, embora tenham sido encontradas mulheres ligadas à impressão, a maioria do trabalho editorial constituía um espaço predominantemente masculino (GRAVIER e LÓPEZ, 2011).

Na região da Catalunha, ainda no mesmo século, Antonia Ibarra (1739-1805) foi uma impressora valorizada em seu tempo, descrita como uma “impressora completa” devido ao seu grande domínio da técnica. Seu pai Manuel Ibarra foi o primeiro funcionário da Pontifícia e Real Imprensa da Universidade de Cervera, atuando entre 1735 e 1759. Após seu falecimento, sua mãe, María Antonia Ibarra Cous, o sucedeu até 1788, quando Antonia assumiu a responsabilidade pelo negócio, permanecendo na direção da oficina tipográfica por décadas. Ela realizou composições em grego, trabalho meticuloso que nenhum outro oficial da época em toda a Catalunha se atreveu a realizar, o que indica seu conhecimento e profissionalismo (USANDIZAGA, 2018).

Antonia Ibarra, Fábulas de Esopo – obra composta e impressa em grego em 1768 na Gráfica da Universidade de Cervera (Catalunha).

Sarah Ruston nasceu na Inglaterra em torno de 1708 e aos 16 anos se casou com Richard Eaves com quem teve cinco filhos. Ele abandonou a família em 1743, deixando a cidade de Birmingham, onde parece ter sido processado por fraude. Ela e seus filhos foram acolhidos por volta de 1748 pelo empresário, impressor e designer de tipos John Baskerville (1707-1775), que vivia em um bairro rico da cidade. Baskerville viveu uma relação amorosa com Sarah Eaves, que manteve o sobrenome do primeiro casamento, causando um escândalo social. Menos de um mês após Richard Eaves falecer, Baskerville e Sarah legitimaram a união. Apesar de não sabermos precisar a data, podemos afirmar que Sarah se tornou sócia de Baskerville, administrando sua gráfica. Sarah manteve a oficina tipográfica mesmo após o falecimento de Baskerville, publicando obras geralmente muito apreciadas pelo público. Quando a oficina foi liquidada em 1785, ela vendeu as matrizes tipográficas de Baskerville para o dramaturgo Beaumarchais, que tinha a intenção de utilizá-las para a edição de obras de Voltaire. Em 1996, a designer de tipos eslovaca Zuzana Licko (1961-) desenho um tipo inspirado na fonte serifada Baskerville, batizando-a com o nome Mrs. Eaves de modo a dar visibilidade à atuação de mulheres no campo da tipografia (L’OUTIL TYPOGRAPHIQUE, 2023; TIPOGRAFOS.NET, 2023).

Dedicatória de John Baskerville à sua esposa Sarah na bíblia que deu a ela por ocasião do casamento. Fonte: L’OUTIL TYPOGRAPHIQUE, 2023.
Comparação entre os tipos criados por Baskerville e Zuzana Licko. Fonte: L’OUTIL TYPOGRAPHIQUE, 2023.

Na Itália, em 1818, Margherita Dall’Aglio (1758-1841) imprimou e publicou a edição do Manual Tipográfico escrito por seu viúvo Giambattista Bodoni, um dos mais importantes tratados sobre tipografia da época. Após a morte do marido, Margherita assumiu suas oficinas. No prefácio do manual, nota-se a palavra “vedova”, que em português significa viúva (USANDIZAGA, 2018).

Magherita Dall’Aglio
Marguerita Dall’Aglio – responsável pela impressão e publicação do Manual Tipográfico de Bodoni, seu viúvo.

Durante séculos, parte das pessoas foram alfabetizadas, no contexto da Europa Ocidental, sem frequentar a escola – geralmente restrita à nobreza e à burguesia – aprendendo a ler e a escrever informalmente com membros da família, colegas de trabalho, empregadores e pastores. Entretanto, a taxa de analfabetismo entre as mulheres era altíssima até o século XIX. Mulheres aprendiam a ler a bíblia e o catecismo, mas não eram encorajadas a aprender a escrever, uma vez que tal prática poderia conferir maior autonomia e independência, atribuições consideradas masculinas (LYONS, 2011). Neste sentido, mulheres, na maioria das vezes, percebiam seu campo de atuação circunscrito aos afazeres domésticos (GRAVIER e LÓPEZ, 2011). Sendo assim, não saber ler e/ou escrever poderiam impedir mulheres de realizar determinadas práticas no campo da tipografia.  

Apagar as mulheres da história da tipografia implica negar não apenas sua atuação na criação e na produção artesanal dos mais variados tipos de impressos como também a capacidade delas de organizarem e gerirem negócios. Parte das viúvas de mestres tipógrafos desempenharam trabalhos na imprensa devido à continuidade familiar e suas respectivas necessidades econômicas. Parte delas atuaram como agentes transitórias nas oficinas tipográficas, aguardando a maioridade dos filhos. Nas capas ou nos colofões, a forma mais habitual de citar a responsabilidade de mulheres pela impressão era utilizar a expressão “Viúva de ….”. Também existiam outras formas de fazer menção ao defunto, por exemplo, a partir da expressão “que seja na glória” ou citando os herdeiros do impressor. Logo, não era comum aparecer o nome próprio da impressora (GRAVIER e LÓPEZ, 2011). Por um lado, as modificações dos nomes das tipografias deram visibilidade à agência das viúvas, mas, por outro, enfatizaram apenas seu novo status civil, apagando seus nomes e deixando-as à sombra dos maridos mesmo que falecidos (CRESTO e FRANÇA, 2022). No entanto, é possível que a decisão da maioria das mulheres de manter o nome do impressor falecido estivesse ligada a razões comerciais e/ou regulações sociais (GRAVIER e LÓPEZ, 2011).

Uma das estratégias de visibilização de mulheres na história do design é justamente investigar atividades organizadas em torno da família, de modo a perceber apagamentos de mulheres por parentes masculinos. Logo, as relações de parentesco podem, paradoxalmente, tanto diminuir quanto aumentar o apagamento das mulheres na história do design (SCOTFORD, 1994). As tipografias herdadas por filhas e viúvas nos indicam também que o acesso aos meios de produção em séculos passados só foi viabilizado, a priori, via matrimônio, filiação entre outras formas de parentesco, visto que, historicamente, mulheres foram oprimidas intelectual e economicamente (CRESTO e FRANÇA, 2022).

REFERÊNCIAS

BOOKMAKING ON THE DISTAFF SIDE, 1937.

BOARDLEY, John. A primeira tipógrafa feminina. (2014). Disponível em: <https://ilovetypography.com/2014/10/15/the-first-female-typographer/>. Acesso em: 07/06/23.

CRESTO, Lindsay; FRANÇA, Maureen Schaefer. Entre fantasmas e assombrações: mulheres na produção de periódicos no Brasil Império. In: Reader Clube do Livro do Design, 2022.

GRAVIER, Marina Garone e LÓPEZ, Albert Coberto. Huellas invisibles sobre el papel: las impressoras antíguas em España y México (siglos XVI al XIX). In: Locus, revista de história, Juiz de Fora, v. 17, n. 02, 2011, p. 103-123.

HASHIMOTO, M. N. (1992). Desenvolvimento histórico da xilogravura no Japão em confronto com o desenvolvimento da gravura na EuropaEstudos Japoneses, (12), 75-89. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/ej.v0i12.142617>. Acesso em: 15/05/22.

L’OUTIL TYPOGRAPHIQUE. Ode aux “Mrs Eaves” – Célébration de deux femmes typographes. Disponível em: <http://www.alain.les-hurtig.org/baskerville/baskerville3.html>. Acesso em: 08/06/23.

LUPTON, Ellen. Yolande Bonhomme. In: LUPTON, Ellen; KAFEI, Farah; TOBIAS, Jennifer; HALSTEAD, Josh A.; SALES, Kalenna; XIA, Leslie; VERGARA, Valentina. Extra Bold – a feminist, inclusive, anti-racist, nonbinary field guide for graphic designers. New York: Princeton Architectural Press, 2021.

MIDORI, Marisa. Marisa Midori conta como as mulheres conquistaram espaço no mundo dos livros. Jornal da USP. 10 abril 2017. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/midori-contacomo-as-mulheres-conquistaram-espaco-nomundo-dos-livros>. Acesso em: 15/05/22.

PINHEIRO, Virginia Teixeira da Paz. Modelagem organizacional das oficinas tipográficas dos séculos XV a XVIII. Ci. Inf., Brasília, 19 (1): 40-47, jan/jun., 1990. Disponível em: <https://brapci.inf.br/index.php/res/download/52921>. Acesso em: 17/05/23.

SCOTFORD, Martha. Messy versus Neat History: toward an expanded view of women in graphic design, Visible Language, vol. 28, n. 4, 1994, pp. 367-387. Disponível em: <https://readings.design/PDF/messy-history-vs-neat-history-toward-an-expanded-view-of-women-in-graphic-design.pdf>. Acesso em: 18/05/23.

TIPOGRAFOS.NET. John Baskerville. Disponível em: <http://tipografos.net/historia/baskerville.html>. Acesso em: 08/06/23.

USANDIZAGA. Mulheres e tipografia: anônimas com nome (2018). Disponível em: <https://www.usandizaga.com/design/mujeres-y-tipografia/>. Acesso em: 17/05/2023.

VIDEO CHINA TV. Bi Sheng: inventor of movable type printing. (15/09/2017). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=L80hqLJq-Cc>. Acesso em: 06/06/23.

WIKANDER, Ulla. A batalha entre homens e mulheres no ofício tipográfico. In: FANNI, Maryam, FLODMARK, Matilda, KAAMAN, Sara (orgs.). Inimigas naturais dos livros: uma história conturbada das mulheres na impressão e na tipografia. São Paulo: Clube do Livro do Design, 2022.

Texto: Maureen Schaefer França
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