Mulheres na Tipografia: Europa e Estados Unidos, século XIX (parte 3)

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No século XIX, as oficinas gráficas e tipográficas familiares foram transformadas em grandes organizações – evento articulado à Revolução Industrial e às mudanças derivadas da mecanização da produção, que transformaram o negócio tipográfico e editorial (USANDIZAGA, 2018). Nesta perspectiva, meados do século XIX pode ser considerada uma época memorável para o comércio tipográfico, uma vez que a demanda por material impresso, atrelada aos avanços nas taxas de alfabetização, nunca havia sido tão alta. Este advento deu origem a organizações tipográficas de ampla escala com grandes equipes de profissionais de tipografia, que trabalhavam geralmente para jornais ou editoras de livros (HALPERT, 2023).

Na Europa, as empresas tipográficas continuaram a ser dirigidas por homens. Nesta conjuntura, as mulheres viram-se excluídas durante anos de certas funções próximas da tipografia, sendo encaminhadas para outras áreas como ilustração, caligrafia e encadernação (USANDIZAGA, 2018). Estas organizações regulavam as admissões de pessoas em programas de aprendizagem e só contratavam funcionários com treinamento. Sendo assim, era muito complicado que garotas pudessem ser contratadas, uma vez que não costumavam ser aceitas pelos programas de aprendizagem, complicando consequentemente seu acesso às empresas de tipografia. Apesar disso, mulheres conseguiram burlar restrições, adentrando na profissão em diversos países (WIKANDER, 2021).

Na França, o número de mulheres empregadas em gráficas duplicou em 30 anos, entre 1866 e 1896, passando de 7 mil para 16 mil profissionais, representando 20% do total de força de trabalho em 1906. Na Escócia, o quadro social, no que tange ao campo da tipografia, era similar ao da França. Em contrapartida, na Inglaterra os sindicatos masculinos eram mais rígidos, sendo assim, poucas mulheres atuaram em ofícios tipográficos nesse período. Nesta conjuntura, a ativista dos direitos das mulheres, editora e impressora inglesa Emily Faithfull (1835-1895) publicou seu romance Change upon Change em 1868 pela Victoria Press, gráfica situada em Londres. A Victoria Press foi fundada em 1860 pela própria Emily Faithfull, sendo um dos vários projetos da Society for Promoting the Employment of Women, que visava fornecer treinamento para mulheres em ofícios dos quais haviam sido excluídas, neste caso, a profissão de tipógrafa, abarcando composição tipográfica e manuseio de impressoras (USANDIZAGA, 2018).

por Elliott & Fry, carte-de-visite de Emily Faithfull de meados da década de 1860. Fonte: USANDIZAGA, 2018.
Sala de impressão da Victoria Press destinada para o emprego de mulheres como compositoras. Fonte: USANDIZAGA, 2018.

A Victoria Press tinha contra si o sindicato dos tipógrafos e teve que enfrentar inúmeros ataques, embora sempre tivesse comissões, por isso cresceu e se manteve ativa por vinte anos. Notável legado foi a Victoria Magazine, uma publicação de trinta e cinco volumes, em defesa dos direitos das mulheres. O romance Change upon Change de Emily Faithfull é um romance trágico que fundamenta o tema da necessidade feminina de acesso à educação. Emily defendeu os votos das mulheres no The Times e em conferências e foi nomeada impressora e editora da Rainha Vitória (USANDIZAGA, 2018).

Woman’s Work with special reference to industrial employment – a paper. Impresso pela Victoria Press em 1871.

Na Noruega, à medida que a imprensa se tornava mais mecanizada, mais mulheres passaram a ocupar o setor. No entanto, nas décadas de 1870 e 1880, membros de organizações tipográficas norueguesas buscaram retirar as mulheres das gráficas. Pois, foi observado que algumas gráficas praticavam concorrência desleal ao contratar muitas mulheres, cujos salários eram mais baratos. Os salários mais baixos eram justificados por alguns tipógrafos entre outros profissionais a partir da suposta baixa capacidade intelectual feminina, o que tornaria as mulheres menos produtivas e rentáveis. Alguns deles acreditavam também que o trabalho adoeceria as mulheres em vista da sua presumida fragilidade e prejudicaria seus dons “naturais”: o casamento e a maternidade. Contudo, tais argumentos não convenceram os donos das gráficas e as mulheres permaneceram ocupando os postos de trabalho (WIKANDER, 2021). Na Suécia, em torno de 1890, os socialistas, em geral, eram a favor da atuação das mulheres como tipógrafas, entretanto, eles assim como os liberais tinham dificuldades em aceitar a igualdade salarial.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, as mulheres não perderam o vínculo com a profissão, visto que milhares delas trabalhavam na indústria gráfica. A Fincher’s Trades Review relatou que em meados do século XIX, pelo menos metade dos profissionais de tipografia eram mulheres. Um dos fatores que contribuiu para o aumento do número de tipógrafas foi a Guerra Civil Americana (1861-1865), visto que mulheres passaram a substituir os homens que foram lutar. No entanto, essas mulheres foram excluídas dos aprendizados e dos sindicatos que ditavam práticas de contratação e preços, especialmente nas grandes cidades. Sem outra opção, as mulheres que precisavam do trabalho e/ou estavam determinadas a trabalhar na área, recebiam salários mais baixos e, desprotegidas pelos sindicatos, geralmente furavam greves, sendo percebidas como “inimigas” por setores masculinos da indústria gráfica (HALPERT, 2023).

Além disso, as gráficas e as salas de redação dos jornais de várias cidades eram lugares agitados, cheios de homens casados e jovens solteiros e repletas de práticas “masculinas” como fumar, beber e entreter-se com jogos de azar. Os sindicalistas possivelmente temiam que a inclusão de mulheres no local de trabalho moderasse tais práticas, visto que na época existiam pouquíssimas profissões que eram “igualmente” acessadas pelos setores masculinos e femininos. Ademais, boa parte dos homens não gostavam de ser identificados a trabalhos realizados por mulheres. Pois, de acordo com o historiador de impressão estadunidense Walker Rumble em seu livro The Swifts: printers in the age of typesetting races (2003), o advento das mulheres na gráfica ameaçou baixar os salários, ‘feminilizar’ a cultura masculina no local de trabalho e apresentar um novo desafio competitivo para o desempenho no trabalho (HALPERT, 2023).

Uma jovem e talentosa tipógrafa chamada Augusta LewisTroup entrou em cena. Augusta aprendeu composição não como aprendiz (pois, como já mencionado as mulheres foram excluídas do aprendizado e da filiação sindical), mas a partir de um simples treinamento ofertado pelo jornal New York World, que contratou várias compositoras em um esforço para reduzir custos. A inclusão de mulheres na sala de composição foi um grande motivo para a equipe masculina de composição do New York World ameaçar a abandonar o trabalho em 1868. No entanto, eles foram amparados pela União Tipográfica de Nova York, local nº 6. O local nº 6 foi um dos sindicatos mais poderosos do país, também chamado de “Big 6”. Assim que o “Big 6” resolveu suas diferenças com a administração do New York World, todas as mulheres foram demitidas de seus cargos. Ficou claro que os integrantes da administração do jornal percebiam as tipógrafas como moeda de troca e mão de obra barata, eles não tinham interesse em defender um ou outro, mas sim em economizar (HALPERT, 2023).

Augusta Lewis Troup, Impressora. Organizou a União Tipográfica Feminina de Nova York em 1868. Em 1870, ela foi eleita secretária correspondente da Internacional Typographical Union (ITU). Líder na luta pela igualdade de oportunidades de trabalho para as mulheres. Fonte: https://digitalcollections.lib.washington.edu/digital/collection/social/id/461/

Foi quando Augusta LewisTroup pediu ajuda a Elizabeth Cady Stanton e Susan B. Anthony, pioneiras do ativismo pelos direitos das mulheres do estado de Nova Iorque. Elizabeth e Susan atuavam como editoras do The Revolution, semanário que cobria questões de direitos das mulheres, sufrágio e política. Elas defenderam as tipógrafas dos sindicatos masculinos e, após suas demissões, contrataram muitas delas para trabalhar para o The Revolution. De acordo com Elizabeth, um dos planos mais acalentados de Susan foi abrir uma gráfica e um jornal, dando empregos a centenas de mulheres (HALPERT, 2023).

Susan B. Anthony e Elizabeth Cady Stanton, 1870.
Jornal The Revolution

Quando elas estabeleceram a Associação das Mulheres Trabalhadoras em setembro de 1868, a divisão entre mulheres trabalhadoras e de classe média tornou-se aparente. As mulheres de classe média, que compunham a maioria das sufragistas, pressionavam para ganhar posição política a fim de promover os direitos das mulheres, enquanto as mulheres da classe trabalhadora pressionavam para obter, primeiramente, igualdade econômica. Em outubro de 1868, Augusta Lewis e cerca de quarenta outras profissionais da área gráfica fundaram o primeiro sindicato feminino dos Estados Unidos: o Women’s Typographical Union No. 1 (União Tipográfica Feminina). Na costa leste, um ano depois, ou seja, em 1869, Agnes B. Peterson também fundava a Women’s Co-Operative Printing Union (WCPU) em São Francisco, Califórnia (HALPERT, 2023).

Desfile do Dia do Trabalho – União Tipográfica Auxiliar das Mulheres, Nova Iorque, 1909. Fonte: https://www.printmuseum.org/blog-3/womens-type-union
Fonte: Jornal West Coast, 18 de maio de 1870. Acervo: Biblioteca Bancroft (EUA).

Uma vez que as mulheres se organizaram em seu próprio sindicato, a ameaça aos sindicatos masculinos se tornou legítima. Os membros da International Typography Union (ITU) estavam cientes acerca dos estragos que os sindicatos femininos poderiam causar nos salários, então, “engoliram seu orgulho” e convidaram a União Tipográfica Feminina para fazer parte da ITU (HALPERT, 2023).

A União Tipográfica Feminina logo foi forçada a provar sua lealdade sindical quando, em janeiro de 1869, o “Big 6” liderou uma greve contra as empresas que empregavam tipógrafas não sindicalizadas com baixos salários. Uma dessas empresas era a Gray and Green Printers, financiadora de tendências feministas do jornal The Revolution, onde Augusta trabalhava. Enfurecendo os sindicatos masculinos ainda mais, a Gray and Green Printers ofereceu um programa de treinamento intensivo de duas semanas para mulheres tipógrafas, essencialmente treinando impressoras. Susan B. Anthony viu a greve como uma oportunidade para treinar compositoras, para ela, era a única maneira de as mulheres obterem experiência no ofício. Além disso, poderia abrir caminho para o treinamento de centenas de meninas pobres, para permitir que essas mulheres obtivessem melhores condições de vida e ganhassem salários iguais aos dos homens. Augusta protestou e foi demitida. Embora Augusta e a União Tipográfica Feminina tenham cortado os laços com o movimento pelos direitos das mulheres, elas ganharam respeito nas organizações sindicais. Para Augusta, esta era a melhor estratégia para obter “igualdade de gênero” (HALPERT, 2023).

Os movimentos pelos direitos das mulheres promoveram, de certo modo e em certa medida, a formação e a inclusão dos setores femininos em profissões relacionadas à tipografia (USANDIZAGA, 2018). Entre 1860 e 1870, havia uma aceitação mais ampla das tipógrafas, mas não livre de oposições. Elas eram filiadas aos sindicatos e reconhecidas, por vezes, como boas profissionais. Também havia uma questão racial articulada a este evento: a atuação de homens negros na tipografia acabou por facilitar a aceitação de mulheres, sobretudo, brancas (HUMLESJÖ, 2021).

Em 1870, Augusta Lewis Troup foi eleita secretária correspondente da União Tipográfica Internacional (ITU), tornando-se a primeira mulher com cargo de liderança dentro de um sindicato nacional e sendo assim o segundo sindicato a incorporar mulheres, depois dos fabricantes de cigarros (USANDIZAGA, 2018).

A União Tipográfica Feminina nº 1 durou cerca de 10 anos, sendo encerrada em 1878. Apesar de seus esforços, as membras do respectivo sindicato viviam em uma sociedade que fazia as mulheres escolherem entre uma família e uma carreira e muitas delas optaram por se casar, incluindo Augusta (HALPERT, 2023). Apesar dos avanços de gênero relacionados ao campo da tipografia no período, a Sociedade de Gráficas, criada em 1905 para o estudo e desenvolvimento da arte da impressão, por exemplo, não permitiu a incorporação de mulheres até 1974 (USANDIZAGA, 2018).

REFERÊNCIAS

HALPERT, Sara. Women’s Typographical Union n. 1. Disponível em: <https://www.printmuseum.org/blog-3/womens-type-union>. Acesso em: 12/07/23.

HUMLESJÖ, Inger. Trecho de uma conversa com Inger Humlesjö. In: FANNI, Maryam, FLODMARK, Matilda, KAAMAN, Sara (orgs.). Inimigas naturais dos livros: uma história conturbada das mulheres na impressão e na tipografia. São Paulo: Clube do Livro do Design, 2022.

USANDIZAGA. Mulheres e tipografia: anônimas com nome (2018). Disponível em: <https://www.usandizaga.com/design/mujeres-y-tipografia/>. Acesso em: 17/05/2023.

WIKANDER, Ulla. A batalha entre homens e mulheres no ofício tipográfico. In: FANNI, Maryam, FLODMARK, Matilda, KAAMAN, Sara (orgs.). Inimigas naturais dos livros: uma história conturbada das mulheres na impressão e na tipografia. São Paulo: Clube do Livro do Design, 2022.

Para saber mais:

BARNETT, George E. The Printers: A Study in American Trade Unionism. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/2635448>. Acesso em: 12/07/2023.

BIGGS, Mary. Neither Printer’s Wife nor Widow: American Women in Typesetting, 1830-1950. Disponível em: <https://www.journals.uchicago.edu/doi/epdf/10.1086/601017>. Acesso em: 12/07/2023.

LEVENSON, Roger. Women in Printing: Northern California, 1857-1890. Capa Press, 1994.

Texto: Maureen Schaefer França
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