Os significados do móvel

0 Compartilhamentos
0
0
0
0
0

O móvel, como artefato do cotidiano, possui inúmeras e variadas funções que lhe são atribuídas pela sociedade na qual é utilizado. Pode ser um meio de expressão de aspectos simbólicos e comunicativos, que extrapolam as questões estritamente utilitárias. Por estar inserido nas atividades humanas diárias, propicia uma relação de proximidade e interações indivíduo-produto. O significado do móvel para a existência humana pode ser considerado sob quatro aspectos fundamentais: função, status, tecnologia e subjetividade (LUCIE-SMITH, 1997).

O termo função, como lembra Heskett (2008, p. 34) “tem sido um dos mais polêmicos do design. No início do século XX, várias ideias, em geral agrupadas sob o termo genérico de “funcionalismo”, articularam os conceitos de design que rejeitavam a decoração floreada tão em voga no século XIX”. A função, como apresentada por Lucie-Smith, está associada à função prática ou utilidade do móvel. Neste sentido, a subdivisão do termo em utilidade e significado, como propõe Heskett (2008), pode esclarecer possíveis confusões. De acordo com esta subdivisão, a utilidade define-se pela qualidade de adequação ao uso. Uma cadeira é funcional à medida que atende os usos que compõem o sentar, levando em conta aspectos como conforto, proporção, resistência, entre outros. A utilidade está relacionada a como os produtos funcionam e com qual eficiência isto acontece. O significado, segundo Heskett (2008, p.37) “explica como as formas podem assumir sentido próprio de acordo com a maneira como são usadas, ou os papéis e valores a elas atribuídos, não raro se tornando símbolos ou ícones consistentes dos costumes e hábitos”. Assim, uma cadeira pode se converter em mesa lateral, por exemplo, de acordo com a percepção de significado pelo usuário.

Este tipo de distinção, feita por meio da mobília, possui exemplos em diferentes épocas e sociedades. Nas residências vitorianas, na Inglaterra do século XIX, o único espaço compartilhado pelos patrões e empregados era o vestíbulo (FORTY, 2007). No local, onde as visitas eram recebidas pelos criados, geralmente havia uma cadeira, usada como um móvel misto: era para ser visto pelos visitantes e, por esta razão, era semelhante aos outros móveis da casa. Entretanto, como era um móvel usado na maioria das vezes por criados, acreditava-se que não havia motivo para serem mais confortáveis do que os modelos usados pelos criados.
O móvel é capaz de representar os valores de um indivíduo ou família; pode ser usado como instrumento de distinção social e ainda possuir um aspecto simbólico que o define como um bem de valor, simultaneamente simbólico e material. O aspecto do status também ajuda a compreender a questão do significado, dentro da proposta de Heskett. No filme Ligações Perigosas (Stephen Frears, 1988), a mobília é parte de uma decoração luxuosa da aristocracia francesa do século XVIII, que valorizava o conforto e a corte. Em várias cenas do filme os móveis marcam os comportamentos aceitos na sociedade. Pés cabriolet, assentos estofados e profundos demonstram uma preocupação com as roupas volumosas do período, como na imagem abaixo.

Cena do filme Ligações Perigosas, 1988.

O terceiro aspecto, a tecnologia, possui inúmeras interpretações, a começar pela própria palavra. De origem grega, tekchnologia, é formada por tekchno: arte, indústria, ciência + logia; logos: linguagem, estudo. Deste modo, tecnologia é a linguagem ou estudo da ciência (HOUAISS, 2001, p. 2683). A palavra vem sendo empregada das mais variadas maneiras: como atributo dos equipamentos eletrônicos atuais, destacando uma qualidade ou característica, passando pelos tênis desenvolvidos nos mais avançados laboratórios de testes sobre movimento e absorção do impacto, até os equipamentos de ginástica, que utilizam a palavra como ferramenta de marketing. O móvel pode ser entendido como um índice do processo de fabricação que o produziu e do seu sistema tecnológico, que inclui as técnicas, as ferramentas e o saber-fazer. Pode fornecer informações sobre uma determinada sociedade, suas tecnologias e conhecimentos, dentro de um determinado contexto histórico.

Móvel da série Animali Domestici, de Andrea Branzi, 1986.

O quarto aspecto, a subjetividade, é pouco discutido em relação ao móvel. Relacionado ao aspecto simbólico e à ideia de significado, este aspecto é uma forma de compreender o papel do móvel na sociedade e ajuda a compreender como acontecem as interações entre pessoas e produtos, e como essa interação influencia as relações humanas. Donald Norman (2004) lembra que a emoção, até bem pouco tempo atrás, era uma parte ainda inexplorada da psicologia humana; vista por algumas pessoas como vestígios de uma origem animal primitiva, pouco discutida quando o assunto é um produto. Segundo Norman, a ciência mostrou que, sob a perspectiva evolucionista, os animais avançados são mais emocionais do que aqueles animais primitivos, e que os seres humanos são os mais emocionais de todos. Norman ainda destaca estudos e pesquisas que comprovaram que produtos planejados sob uma estética atraente são mais reconhecidos e mais facilmente usados.

O aspecto subjetivo relaciona-se com algumas propostas do design pós-moderno, nas décadas de 1970 e 1980, que argumentavam sobre a questão simbólica nos produtos, baseados nos conceitos da Semiótica. Um exemplo é a série produzida pelo designer italiano Andrea Branzi, intitulada Animali domestici, na qual os móveis são pensados a partir da perspectiva de seres domesticados no interior doméstico. Branzi compara os móveis aos animais de estimação, evocando formas primitivas, próximas à arte banal e outras interações arte-design, que convidam a reflexões para além de usos e funções convencionalmente relacionadas ao mobiliário. O radical design italiano desenvolveu-se como uma crítica ao conceito do bom design, “encarnava a contracultura do final dos anos 60 e pretendia destruir a hegemonia da linguagem visual do movimento moderno”. (FIELL, 2006, p. 156). Desenvolveram propostas mais teóricas, no campo do design conceitual e realizaram projeções utópicas para a arquitetura e o design.

Cadeira Multidão, Irmãos Campana, 2001.

Outro exemplo do aspecto subjetivo é a cadeira Multidão. O móvel faz parte de uma série criada pelos Irmãos Campana entre 2001 e 2002 com uma linguagem baseada no acúmulo, no que eles chamam de uma estética “over” (MONACHESI, 2007). Algumas peças, nesta fase, aproximavam-se do kitsch; termo usado pelos próprios designers. Na concepção dos Irmãos Campana, o kitsch está associado ao acúmulo de objetos, às referências decorativas, aos objetos agrupados. A cadeira é feita com uma base de aço e aplicação de uma grande quantidade de bonecas de pano, que servem de assento e também de encosto da cadeira. Os materiais utilizados, além das bonecas, são o aço inoxidável, presente na estrutura e nos pés, servindo como suporte ao móvel; a clareza e limpeza associadas ao metal funcionam na poltrona como aspectos que permitem que a estrutura de apoio seja quase invisível quando comparada à composição do assento. As bonecas, feitas de tecidos variados, possuem componentes como fitas, laços, cordões, papéis, miçangas e outros detalhes que complementam a caracterização de cada boneca. O fato de algumas bonecas poderem ser visualizadas de corpo inteiro reforça o caráter humano; a personificação. Há uma certa subversão em colocar bonecas com aparência humana em uma poltrona, pois o uso primordial de uma poltrona é o assento. E sentar sobre as bonecas poderia criar o efeito de sentar sobre a multidão, que traz ainda um significado que pode ser interpretado como indiferença. Uma outra interpretação é a idéia da multidão que absorve, que “abraça” mais uma pessoa, um convite para um jogo coletivo, onde o individual se perde em meio à multidão.

Desta maneira, os quatro aspectos sugeridos por Lucie-Smith apresentam-se como possibilidades para compreender o mobiliário e sua inserção na sociedade, refletindo sobre seus significados.

Referências

LUCIE-SMITH, Edward. Furniture: a concise history. London: Thames & Hudson, 1997.

CRESTO, Lindsay. A re-significação da relação entre design e tecnologia na obra dos Irmãos Campana. Dissertação (Mestrado em Tecnologia e Sociedade). Programa de P´s-graduação em Tecnologia. UTFPR, Curitiba, 2009.

Você também pode gostar