Por que a moda é, não raras vezes, vista como algo fútil e banal?

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No prefácio do livro “Historia del diseño en América Latina y el Caribe”, o designer alemão Gui Bonsiepe (2008, p. 10) defende o termo “diseño” no lugar de “design” por compreender que este último, desde os anos 90, teria sido associado ao “entretenimento midiático, divismo [processo de ‘divinização’ de um indivíduo], marketing, estilo de vida, moda, a algo caro e luxuoso, divertido e efêmero. Em suma, aos aspectos light da vida cotidiana”. Embora seu discurso faça sentido em certa medida, Gui Bonsiepe reitera a desvalorização da moda com relação a outros campos do design. Tal depreciação certamente é atravessada por desigualdades de gênero.

A moda é tão cotidiana e familiar para nós que pode se tornar invisível, parecendo algo dado e “natural” como se simplesmente tivesse que ser assim, sem que existisse, portanto, a necessidade de questioná-la criticamente. A moda está relacionada historicamente à frivolidade, ao luxo e ao consumismo, tendo sido relegada por muitos estudiosos a uma esfera social inferior, sendo supostamente indigna de preocupações intelectuais (LIPOVETSKY, 2009).
Esta percepção da moda enquanto algo pueril é atravessada por questões de gênero, haja vista a sua associação histórica com o “universo feminino” a partir do processo de industrialização e de urbanização, que ganhou força na Europa no século XIX, transformando as relações entre homens e mulheres das camadas médias de diversos países ocidentais a partir do distanciamento entre as esferas pública e privada.

Neste contexto, as mulheres passaram a ser restringidas à esfera privada, definida como o lugar da nutrição, do lazer e do descanso e os homens passaram a atuar, em maior medida, no espaço público caracterizado como o lugar do trabalho, da economia e da política. Sendo assim, o valor das mulheres – que anteriormente, quando a família constituía uma unidade de produção e o trabalho feminino complementava o dos homens e vice-versa, residia em sua capacidade de trabalho, sagacidade econômica, força física e fertilidade – passa a se concentrar, amplamente, na aparência física.

Desta maneira, surge uma nova classe feminina alfabetizada e ociosa, uma vez que da submissão dessas mulheres à domesticidade forçada, dependia a aceleração do capitalismo industrial. Sendo assim, o culto à domesticidade estava conectado, em grande proporção, ao cultivo da “beleza”, sendo esta mediada pelas novas tecnologias – daguerreótipos, ferrotipias e rotogravuras –, capazes de reproduzir, em grande escala, imagens de como deveria ser a aparência feminina (FORTY, 2007; WOLF, 2018; LLORENTE e GUTIÉRREZ, 2020).

Apesar do senso comum relacionar a moda a algo fútil, as pessoas não usam qualquer roupa, podendo, inclusive, sentir medo e insegurança de se vestir de determinada maneira. As pessoas investem tempo na escolha de modelos e nos provadores, combinando as roupas de modos particulares e chegando a se endividar às vezes para adquirir peças específicas, uma vez que a aparência significa algo e está ligada, parcialmente, ao reconhecimento social, podendo, inclusive, possibilitar ou negar acessos e interações sociais. Em vista disso, a moda não deve ser reduzida a uma atividade ligada ao lazer, à ornamentação e às novidades, mas compreendida como uma prática transpassada por relações de poder, uma vez que é constituída em meio às questões sociais, econômicas e tecnológicas de um tempo e lugar específicos. Pois, a moda é criada, divulgada e consumida segundo visões de mundo, interesses, desigualdades e regulações sociais, sendo atravessada por relações de gênero, sexualidade, classe, raça/etnia, idade/geração, possuindo, portanto, dimensão política.

Logo, a moda não é neutra e tampouco ingênua e a maneira como ela é produzida é importante, visto que ao transformar ideias em formas sólidas, tangíveis e duradouras, a moda parece ser a verdade em si mesma, agindo sobre nós, regulando nossos modos de pensar, sentir e estar no mundo (FORTY, 2007). Sendo assim, a moda pode tanto privilegiar certos indivíduos como também funcionar como um espaço de negociação, sendo produzida/utilizada na tentativa de tensionar desigualdades sociais.

Referências

  • FRANÇA, Maureen Schaefer. Juventude “transada”: moda como tecnologia de gênero na revista Pop (anos 1970). 2021. 466 f. Tese (Doutorado em Tecnologia e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2021.
  • FORTY, Adrian. Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
  • LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • LLORENTE, Lucina; GUTIÉRREZ, Juan. Una mirada a la historia del color rosa. In: Indumenta, mar. 2020, p. 82-93.
  • WOLF, Naomi. O mito da beleza. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
Texto: Maureen Schaefer França
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