Prática Projetual: uma perspectiva feminista

1 Compartilhamentos
1
0
0
0
0

No artigo Feminist Interventions in the Design Process, Els Rommes (2014), pesquisadora holandesa,analisa sob a ótica de gênero estratégias de empresas de design – exclusivamente, aquelas dedicadas às tecnologias de informação e comunicação – no que diz respeito à chamada categoria “usuário”. Apesar da pesquisadora enfatizar questões de gênero, as discussões propostas por ela possivelmente poderiam ser ampliadas para pensarmos outros tipos de marcadores sociais (corpo, classe, idade/geração, raça/etnia e etc.). Pois, conforme Rommes, diversas pesquisas têm apontado que o “design padrão” tem os setores adultos masculinos como referência de criação, sobretudo, homens cis, brancos, adultos, heterossexuais, sem deficiências, das camadas médias urbanas e com educação superior.

Dimensões estrutural, simbólica & identitária

Tendo isto em mente, o design pode ser analisado, dentre outras maneiras, a partir de três dimensões a fim de percebermos possíveis desigualdades e exclusões, de acordo com estudos elaborados pela filósofa estadunidense Sandra Harding. Apesar de Harding enfatizar diferenças de gênero, também podemos estender a ideia para pensarmos outras formas de desigualdades sociais. Como indicado, tratam-se de três dimensões, sendo elas: estrutural, identitária e simbólica. Na dimensão estrutural, podemos perguntar quem tem acesso ao produto? Quais recursos (econômicos, socioculturais, físicos) são necessários para adquirir ou usar o produto? Quem é excluído e quem é beneficiado? O mundo de quem é representado no produto? Analisar esta dimensão nos ajuda a compreender quais corpos são tomados como referência para criação de produtos e quais não são levados em conta. Entender as possíveis causas de tais exclusões também pode nos ajudar a expandir nossa compreensão de mundo assim como nossa sensibilidade ao projetarmos. Na dimensão da identidade, podemos identificar e aprofundar quais habilidades físicas, preferências e conhecimentos específicos são requisitados para que pessoas consumam determinado produto. Nesta perspectiva, durante a criação de um artefato, várias pessoas que compõem o público-alvo estabelecido poderiam ser entrevistadas e analisadas de modo a contemplar um número maior de especificidades. Na dimensão simbólica, pode-se questionar quais significados e estereótipos são representados pelos produtos. Para analisar esta dimensão, é importante se informar a respeito de estereótipos de gênero, raça/etnia, classe, idade/geração e etc. na tentativa de perceber como tais representações podem reiterar desigualdades, além de reduzir a multiplicidade dos modos de ser e estar no mundo. Por exemplo, no caso da categoria de gênero, ao divulgar produtos como fogões, geladeiras e aspiradores, na maioria das vezes, empresas recorrem a representação de mulheres, naturalizando o trabalho doméstico como uma atribuição feminina.

Estereótipos, “Metodologia Eu” & Design participativo

Nas empresas de design analisadas, Els Rommes observou o emprego de três práticas principais na construção de representações de usuários, cada uma com diferentes implicações: 1) Designs criados a partir de estereótipos; 2) A chamada “Metodologia Eu”; 3) Teste de Usuário e Design Participativo. Muitas das companhias estudadas por Rommes, por exemplo, acionaram estereótipos de gênero, reiterando visões dicotômicas e biologizantes, ou seja, como se determinados atributos fossem naturalmente femininos ou masculinos – abordagens extensivamente criticadas pelo feminismo. Conforme a análise, designers fizeram uso de produtos direcionados especificamente para mulheres como revistas, livros, filmes e programas televisivos como fonte de inspiração, reforçando, por vezes, perspectivas homogeneizantes a respeito dos setores femininos. Deste modo, não parece importar se o público-alvo é dirigido para meninas, mulheres jovens ou adultas; se elas possuem alto nível de escolaridade ou não; se são brancas, negras, cis, trans, intersexo; se vivem em áreas favorecidas ou periféricas; se gostam de cozinhar, de se maquiar, jogar futebol, pois os estereótipos tendem a reduzir as múltiplas possibilidades de existir. Na maioria das empresas estudadas, ideias estereotipadas sobre como “são” as mulheres e do que elas “gostam” nortearam, senão exclusivamente, importantes decisões a respeito do processo projetual (estratégia que possivelmente também foi utilizada no design de produtos voltados para o público masculino). Sendo assim, ao desenvolver produtos baseados em interesses supostamente típicos das mulheres, tais empresas reforçaram, em grande medida, desigualdades sociais em vez de desafiá-las por meio de esforços capazes de evidenciar o gênero como uma construção normativa e não como uma questão biológica.  

A maioria das companhias analisadas por Rommes também empregaram, amplamente, a chamada “metodologia eu”. A expressão enfatiza o aspecto subjetivo do processo projetual, visto que as tomadas de decisão de design são baseadas nas preferências dos próprios designers, ou seja, os mesmos veem a si próprios como típicos usuários, desconsiderando as necessidades de consumidores potenciais (exclusão não necessariamente estabelecida por designers). A “metodologia eu” foi considerada por Rommes como problemática, pois as empresas analisadas eram formadas majoritariamente por homens, sendo assim produtos direcionados para o público feminino nem sempre contavam com a participação de mulheres, podendo dar origem a produtos insatisfatórios, indiferentes, insensíveis, que machucam. No entanto, a preocupação com as questões de gênero fez com que várias companhias utilizassem o que Rommes considerou ser uma versão adaptada da “metodologia eu”, ao compor equipes de design formadas por mulheres designers de modo a ampliar a compreensão acerca dos que os setores femininos desejam e precisam. Tal abordagem assume que designers mulheres são semelhantes às usuárias sendo capazes de compreender o público feminino melhor do que designers homens. Tal estratégia pode ser uma armadilha, reiterando visões essencialistas, ou seja, a ideia de que cada mulher é representante das mulheres em geral. Pois, há várias maneiras de vivenciar as feminilidades, sendo estas matizadas em termos de classe social, idade/geração, corpo, etnicidade e etc. Ademais, por mais que designers mulheres se assemelhem às potenciais usuárias, a sua relação com a criação do artefato é atravessada por interesses particulares, tornando sua relação com o produto diferente das consumidoras. Portanto, essa metodologia precisa ser avaliada e empregada com atenção e muito cuidado. A tendência essencialista desta abordagem poderia ser tensionada por designers, por exemplo, por meio de estudos sobre interseccionalidade e posicionalidade[1], que podem nos ajudar a pensar de maneira mais sensível, ampla, complexa e criativa, de modo a compreender a multiplicidade, o dinamismo e as contradições do existir, evitando generalizações (RODRIGUES, 2013; AKOTIRENE, 2019). Outra forma é acessar os erros e acertos de experimentos realizados anteriormente de modo a identificar considerações relevantes e refinar seus próprios entendimentos.

Outra maneira de descobrir o que as pessoas necessitam é abarcar testes de produtos com usuários finais representativos ou utilizar a abordagem do design participativo. Tais estratégias permitem aos potenciais usuários finais alguma influência direta sobre o design, de modo que o processo projetual não dependa apenas das crenças e ideias de designers. Várias das empresas analisadas por Rommes se dedicaram a identificar usuários potenciais e a examinar suas preferências. Mas esse envolvimento do usuário no processo de design parece ser a exceção e não a regra. Inclusive, o envolvimento de usuários potenciais nas fases iniciais do processo projetual é ainda mais raro. Um problema geral relacionado às estratégias de design participativo diz respeito à tentativa de atingir um grau razoável de representatividade de modo a tornar o processo mais sensível à variedade de necessidades, habilidades e preferências. Nesta perspectiva, mais pesquisas e discussões são necessárias. Sendo assim, de modo geral, o principal ponto é conscientizar designers a respeito de suas visões de mundo e os efeitos de tais perspectivas na sociedade na esperança de que os mesmos revejam suas crenças e práticas.

Pois, na sociedade contemporânea ocidental, a identidade é construída e negociada por nós, sendo, portanto, instável e maleável e não mais outorgada pelas instituições (Estado, Família, Igreja e etc.) (SLATER, 2002). Neste sentido, nós possuímos maior agência no que diz respeito à construção dos nossos valores, das nossas visões de mundo e das nossas respectivas identidades – sendo estes produzidos a partir da nossa interação com as tecnologias, entre elas, o design. Os artefatos são representações, ou seja, construções de significados materializados através da linguagem (cores, formas, texturas, estampas, tipografias etc.). A capacidade do design de representar ideias sobre uma série de categorias socioculturais (classe, gênero, raça/etnia, idade/geração entre outras) oferece às pessoas pontos de ancoragem que balizam a construção de suas subjetividades[2]. Sendo assim, em parte, nós construímos nossas identidades através do consumo de produtos, conforme nosso capital econômico, nos apoiando nos significados que os artefatos projetam para nós, a fim de nos “autorrepresentarmos” para a sociedade. Deste modo, as pessoas tendem a se identificar com produtos cujos valores possuem, pensam que possuem ou gostariam de possuir (MILLER, 2013).

Design é verbo e substantivo. Design, enquanto verbo, diz respeito ao ato de projetar. Design, enquanto substantivo, se refere aos artefatos em si, ou seja, às consequências das condições do projeto. Logo, a conjunção das atribuições do design enquanto verbo e substantivo em uma única palavra expressa a ideia de que são inseparáveis (CARDOSO, 2004) e de que nós, enquanto designers, somos responsáveis por aquilo que colocamos em circulação. Nesta perspectiva, o design pode tanto reforçar/naturalizar quanto questionar desigualdades sociais. Em outras palavras, o design pode funcionar tanto como um espaço de imposição, privilegiando e excluindo certas perspectivas de mundo, quanto um espaço de negociação, abarcando variadas experiências, sendo potencialmente mais democrático.


[1] Muito resumidamente, a interseccionalidade pode ser compreendida como uma ferramenta de análise das identidades a partir do entrelaçar de marcadores sociais (gênero, sexualidade, idade/geração, classe social, raça/etnia, religião, profissão e etc.), pois os mesmos não atuam de forma autônoma, mas se intersectam e se modificam, mediando, a construção das experiências de vida. Sendo assim, um jovem negro das camadas médias da capital fluminense possivelmente vivenciará a juventude de maneira diferente quando comparado a uma jovem branca das camadas menos favorecidas do interior paranaense, por exemplo. Já o conceito de posicionalidade diz respeito aos diferentes graus de atribuições, privilégios e desvantagens que as pessoas vivenciam em função da intersecção dos vários constructos identitários se modificando conforme o contexto em que se encontram (SARDENBERG, 2015).

[2] “Sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes que constituem nossas concepções sobre ‘quem nós somos’. A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significados à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos uma identidade” (WOODWARD, 2000, p. 55).

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Blucher, 2004.

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

ROMMES, Els. Feminist Interventions in the Design Process. In: Gender in Science and Technology. 2014.  p. 41-56. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/j.ctv1xxsrx.5?seq=1#metadata_info_tab_contents>. Acesso em: 09.02.2021.

RODRIGUES, Cristiano. Atualidade do conceito de interseccionalidade para a pesquisa e prática feminista no Brasil. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013.

SARDENBERG, Cecilia M. B.. Caleidoscópios de gênero: gênero e interseccionalidades na dinâmica das relações sociais. Mediações, Londrina, vol. 20, n° 2, p. 56-96, jul/dez, 2015.

SLATER, Don. Cultura do Consumo e Modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.

Este texto apresenta um resumo do artigo "Feminist Interventions in the Design Process", da autora Els Rommes, justaposto a considerações da pesquisadora Maureen Schaefer França. 
Você também pode gostar