Capas de disco & apropriação cultural

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No Brasil, em meados dos anos 1960, boa parte das pessoas negras usavam cabelos alisados com pastas capilares e com ferro quente de modo a se sentirem mais dignas – questão relacionada historicamente ao racismo e aos ideais eurocentrados de beleza. Esse padrão de beleza passou a ser recusado a partir dos últimos anos da década de 1960, quando discursos e imagens articulados à conscientização da negritude passaram a circular cada vez mais no país, mediando a construção de novos tipos de subjetividades. Nesta conjuntura, imagens de artistas e de atletas, tanto brasileiros quanto estrangeiros, como também de militantes como Angela Davis difundiram os cabelos afro por meio da televisão, do cinema, das revistas e das capas de discos, fornecendo novos referenciais de estética negra. Entre as celebridades brasileiras estavam os artistas Tony Tornado, Zezé Motta e Tim Maia, que deixaram de alisar os cabelos após terem passado algum tempo nos Estados Unidos durante os anos 1960, quando entraram em contato com o movimento black is beautiful (PEIXOTO e SEBADELHE, 2016). Neste contexto, artistas ligados à Tropicália como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa também passaram a desfilar cabeleiras black power, pois estas pareciam rebeldes e funcionavam como símbolos de liberdade, coragem e beleza naqueles anos (SANT’ANNA, 2014).

Apesar disso, o uso de cabelos afro por pessoas negras não passou incólume pela Ditadura Militar, uma vez que a mesma associou a luta antirracista ao comunismo. As movimentações a favor da autoestima negra e da solidariedade racial também foram marginalizadas pela imprensa setentista, que alinhada ao mito da democracia racial, as vinculou a práticas supostamente “racistas” e segregacionistas. Em outras palavras, o espírito de autoestima de pessoas negras incomodava setores conservadores e autoritários da sociedade brasileira. Dj Jailson, na época integrante da equipe Jet Black de Jacarepaguá, conta que durante as abordagens, policiais enfiavam as mãos nas cabeleiras black, pressupondo que os jovens carregavam objetos e drogas: “Passávamos horas armando os nossos blackões, na frente do espelho, com vários macetes (laquê, parafina – para fios de cabelos mais finos – e banhos que perfumavam o cabelo com folhas de eucalipto) e, na maioria das vezes, antes de entrar nos bailes eles desmanchavam nossos penteados e mexiam violentamente nas nossas cabeleiras para nos revistar. Aquilo era aviltante mesmo” (PEIXOTO e SEBADELHE, 2016, p. 82).

O penteado black power foi apropriado pela indústria fonográfica – como também pelas indústrias da moda e da publicidade – para associar pessoas brancas à ideia de modernidade. Na capa de disco Wanderléa… Maravilhosa, lançado em 1972, a cantora foi fotografada com uma peruca black power loura. A escolha do adereço possivelmente foi estratégica, visto que Wanderléa vinha buscando se desconectar da imagem de uma moça delicada, meiga e doce associada ao seu apelido “Ternurinha” em tempos da Jovem Guarda. Inclusive, a artista afirma que o apelido não foi uma escolha dela, mas sim uma imposição na tentativa de conter sua postura mais audaciosa. O interesse da cantora em alterar a sua imagem na mídia surgiu em 1971, durante uma visita a Caetano Veloso e Gilberto Gil, na época, exilados em Londres. Sendo assim, o uso da peruca articulada à nudez sugerida por seus ombros nus – possivelmente relacionada à chamada “revolução sexual” – parece estar vinculada à tentativa da cantora de afrontar o machismo e de se libertar de um modelo de feminilidade tradicional (RÁDIO JORNAL, 2018; FOLHA DE S. PAULO, 2010).

O uso da peruca black power por Wanderléa pode ser compreendida como uma apropriação cultural, ou seja, uma ação praticada por grupos dominantes, que consiste em se apoderar de elementos de outra cultura inferiorizada, eliminando ou modificando seus significados e desconsiderando a opressão sistemática muitas vezes imposta por esse mesmo grupo dominante. Neste sentido, pode ocorrer o esvaziamento de expressões culturais de autoafirmação e de resistência política e psíquica, fundamentais para o reposicionamento dos grupos subalternizados. Ademais, o uso de cabelos black power é atravessado por contradições, pois muitos elementos vistos como nocivos dentro de seus universos culturais podem ganhar ares cult quando adotados pelos grupos dominantes (ALMEIDA, 2019).

Referências

Para conferir as referências, acessar: FRANÇA, Maureen Schaefer. Juventude “transada”: moda como tecnologia de gênero na revista Pop (anos 1970). 2021. 466 f. Tese (Doutorado em Tecnologia e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Curitiba, 2021.

Texto: Maureen Schaefer França
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