Texto publicado por Lindsay Cresto e Maureen Schaefer França na Estudos em Design, Revista (online). Rio de Janeiro: v. 32 | n. 2 [2024], p. 78 – 90 | ISSN 1983-196X
Resumo:
A História do Design tem sido construída, em maior medida, a partir de uma perspectiva euro e andro-centrada, abarcando projetos criados por homens e invisibilizando a contribuição feminina. Logo, a construção de narrativas alternativas às hegemônicas é fundamental para a conscientização acerca das desigualdades de gênero no campo do design, de modo que estas possam ser combatidas. Sendo assim, refletimos sobre como estereótipos de gênero atuaram na trajetória de mulheres designers, reforçando hierarquias entre áreas de atuação, saberes e práticas projetuais. Para isso, nos pautamos na articulação entre História do Design e Estudos de Gênero, uma vez que visamos desnaturalizar desigualdades sociais, conferir maior visibilidade às designers e colaborar para uma historiografia mais justa e diversa.
Palavras-chave: História do Design, Estudos de Gênero, estereótipos de gênero,
invisibilidade das mulheres no design.
Introdução
Ao folhearmos as páginas de livros de história do design, costumamos nos deparar com muitos nomes masculinos, o que nos leva a imaginar que raríssimas mulheres (1) atuaram no campo. Homens designers e suas produções costumam ser eleitos pelos historiadores do design para representar períodos, movimentos, estilos e teorias, tendo seus trabalhos mais reverenciados e conhecidos do que os femininos. Rafael Lima (2017) averiguou este fenômeno, ao mapear a quantidade de nomes masculinos e femininos citados em livros de História do Design utilizados no Brasil, observando uma enorme disparidade entre eles (Tabela 1):
Há histórias “ordenadas” e “conturbadas” do design – termos emprestados de Martha Scotford (1994). A história “ordenada” do design pode ser compreendida como a história hegemônica/convencional/tradicional, ou seja, aquela que costuma dar foco para as práticas realizadas sobretudo por homens cis brancos da Europa Ocidental e da América do Norte, contando, não raras vezes, com um rol de informações oriundas dos mais diversos tipos de fontes (projetos, periódicos, premiações, entrevistas, fotografias etc.). Uma história andro e nortecêntrica, que tende a naturalizar, por vezes, visões de mundo alinhadas à branquitude, ao machismo e ao pensamento colonial. Em contrapartida, a história “conturbada” pode ser entendida como a história caótica e fragmentada das minorias sociais, de designers “sem rosto”, sendo moldada, quando possível, a partir de sobras, fiapos, notas de rodapés e de arquivos esquecidos e empoeirados. A história “conturbada” procura construir narrativas articuladas a grupos minoritarizados e subalternizados, abarcando abordagens alternativas que buscam tensionar e desnaturalizar as mais variadas formas de opressão, dando visibilidade para as relações de poder.
Em vista da suspensão do calendário acadêmico em 2020, devido a pandemia de Covid-19, nós – professoras de Teoria e História do Design – aproveitamos o momento disponível para ofertarmos o minicurso online “A (in)visibilidade das Mulheres no Design” (2). Este foi idealizado com o propósito de apresentarmos a biografia e a produção de algumas designers brasileiras e estrangeiras; refletirmos acerca das desigualdades de gênero vivenciadas por elas em suas trajetórias; e tentarmos compreender as razões pelas quais as designers e suas produções foram minimizadas ou apagadas pelas narrativas oficiais. O minicurso foi estruturado a partir dos seguintes temas: Do lar vitoriano às artes decorativas e industriais do Art Nouveau; Garotas querem aprender algo: a ênfase na geometria e na abstração; Modernismo e racionalismo no design: dos anos 1920 aos 1960; Do design pop ao design digital; A (in)visibilidade de mulheres negras e latino-americanas no design.
Ao longo das leituras realizadas para o minicurso, percebemos a repetição de alguns estereótipos de gênero vivenciados por mulheres designers, que prejudicaram ou que, paradoxalmente, trouxeram vantagens para a sua atuação profissional, contribuindo, em maior medida, para o apagamento de suas produções pela historiografia do design. Sendo assim, temos a intenção de elencar os estereótipos de gênero percebidos ao longo do minicurso e abordar como eles afetaram a trajetória de algumas designers. Pois, ao longo dos anos, estereótipos de gênero prejudicaram o acesso de mulheres à educação formal em design, delimitaram áreas de atuação e hierarquizaram saberes e práticas projetuais.
A história do design funciona como uma “lente pela qual olhamos o design. Essa lente amplia e dá foco para o que é considerado importante de ser lembrado, mas também relega o que ficou de fora ao esquecimento” (Santos, 2015, p. 26). Logo, a construção de narrativas alternativas é fundamental para a conscientização acerca das desigualdades de gênero no campo do design, de modo que estas possam ser combatidas e para que a história do design possa ser construída de forma mais justa e plural.
Mulheres no design: uma história com obstáculos
O que as mulheres têm em comum não é apenas a correlação naturalizada entre sexo anatômico/identidade de gênero, mas experiências compartilhadas em virtude da sua condição de “mulher”. Essa condição, vivenciada em um sistema capitalista, racista e patriarcal, tem como consequências acessos negados, capacidades desacreditadas, diferenças salariais e trabalhos depreciados. As mulheres foram historicamente segregadas da vida social e política, tendo como consequência a invisibilidade como sujeito (Louro, 2007). A disposição de investigar e reescrever histórias sob uma perspectiva feminista ganhou força no final do século XX (Zilberleib, 2022).
A invisibilização feminina na história do design está relacionada à definição de design adotada, à ausência de registros históricos, aos relacionamentos, à divisão sexual do trabalho etc. Para Giselle Safar e Maria Dias (2016), o design não deve ser restrito aos objetos industrializados pois, excluir produções artesanais é apagar da história muito do que as mulheres projetaram. No século XIX, inclusive, foi a única forma de criação/produção possível para boa parte delas. O local de produção também interfere na visibilidade: a esfera doméstica é menos valorizada do que a pública, fazendo parte de uma lógica capitalista, que considera a fábrica ou escritório como o espaço do trabalho profissional, enquanto o lar é considerado espaço de reprodução, do cuidado, do trabalho amador e não remunerado.
Mulheres também foram excluídas das academias de arte (criadas no século XVIII) por muito tempo, não frequentando aulas com modelo vivo, um conhecimento fundamental para o retrato e a pintura histórica, pois considerava-se inapropriado observarem corpos despidos. A sociedade burguesa europeia do século XIX estabeleceu classificações do que era arte “feminina” em oposição à “masculina”, colaborando para a criação de estereótipos sobre as capacidades intelectuais associadas aos sexos. Nesta conjuntura, houve uma crescente separação entre a figura do artista, valorizado pelo intelecto e criação, e o artesão, considerado um hábil executor sem grandes dotes intelectuais. As mulheres eram supostamente aptas para criarem apenas gêneros “menores”: miniaturas, pinturas em porcelana, aquarelas, naturezas mortas, tapeçarias e bordados (Simioni, 2010).
No século XIX, os conselhos voltados às jovens das classes altas era fazer o lar bonito com trabalhos de agulha, pintura, desenho, estofamento. O artesanato era ensinado às mulheres para desenvolver suas habilidades “naturais” de sensibilidade e preencher o tempo livre (aquele não dedicado à casa e à família) de modo produtivo (Edwards,2006). Mulheres de várias classes sociais criaram artefatos, porém, localizados no lar, permaneceram “nas margens”, embora fossem centrais na construção das identidades femininas (Hackney, 2006).
Os trabalhos artísticos femininos restringiam-se, em grande medida, às atividades realizadas na esfera doméstica, sendo consideradas como passatempo, amadoras, indignas de remuneração. Com o acesso à formação artística, os trabalhos de criação têxtil remunerados passaram a ser considerados como ocupações honradas para as mulheres. Ainda assim, nas Exposições Universais de Viena (1873), Filadélfia (1876), Chicago (1893) e Paris (1900), as produções femininas foram exibidas em pavilhões separados e avaliadas por sua “feminilidade”, não pela qualidade (Campi, 2010).
Apesar do patriarcado ser uma categoria controversa (3) nas teorias feministas, tem limitado as oportunidades das mulheres em várias áreas da sociedade e do design. Ele pode ser definido como “o poder que homens usam para dominar mulheres” (Hooks, 2020, p. 145). O patriarcado tem como uma das consequências a produção de estereótipos, que reduzem mulheres a determinadas formas de sentir, pensar e agir, prejudicando suas trajetórias pessoais e profissionais. Sendo assim, a seguir, abordamos estereótipos de gênero comuns no campo do design.
Estereótipos de gênero no design
O gênero é uma norma – socialmente constituída e, portanto, passível de mudanças – que regula práticas sociais conforme o sexo biológico (Butler, 2003). Na Europa, no século XVIII, o dimorfismo sexual (4) passou a legitimar “cientificamente” hierarquias que já existiam entre homens e mulheres, naturalizando supostas diferenças afetivas, cognitivas e comportamentais, em uma perspectiva de opostos complementares (Laqueur, 2001).
Os estereótipos de gênero têm reiterado historicamente binarismos de gênero, reforçando a ideia de que algumas qualidades e atribuições “naturalmente” femininas seriam diametralmente opostas às masculinas.
O estereótipo faz uso de algumas características fáceis de compreender e lembrar, amplamente compartilhadas, reduzindo as pessoas ou grupos de pessoas a tais peculiaridades, exagerando-as, simplificando-as e fixando-as como imutáveis. A estereotipação envolve o exercício do poder cultural ou simbólico que autoriza certas instituições ou pessoas a representar as outras de uma maneira determinada, dentro de um regime discursivo dominante (Santos; Pedro, 2011, p.172).
Com relação às áreas de atuação é perceptível que algumas costumam ser percebidas como “femininas” tais como design de superfície, moda, joias, bordados, crochê, tricô, cerâmica e ilustrações para livros infantis – ligadas, de certa forma, à decoração, às manualidades, ao trabalho doméstico e ao cuidado infantil. A persistência de estereótipos decorre da manutenção de valores patriarcais, retificando desigualdades de gênero e articulando, por vezes, trabalhos femininos a práticas menos complexas, ingênuas e banais.
Os estereótipos de gênero também atuam na feminização de algumas áreas do design. O aumento de mulheres na composição da profissão de designer têxtil (feminilização da profissão) possivelmente fundamentou a depreciação do campo (feminização da profissão) (Yannoulas, 2012).
Como já indicado, a partir de várias leituras realizadas para o minicurso, percebemos alguns estereótipos de gênero (Tabela2) vivenciados por mulheres designers, tendo sido estes construídos mediante oposições binárias, naturalizando desigualdades de gênero no campo do design.
Embora o movimento britânico Arts & Crafts, que ganhou relevo na segunda metade do século XIX, tenha sido social e artisticamente transformador, ele reproduziu a ideologia patriarcal vitoriana. William Morris tensionou estereótipos de gênero ao aprender a bordar, no entanto, foram mulheres de seu convívio íntimo/social e de sua oficina que executaram, em boa parte, seus projetos. Com relação às mulheres de seu convívio íntimo/social, podemos destacar sua esposa Jane Burden, suas filhas Jenny e May (5), sua cunhada Elizabeth Burden, sua empregada doméstica Mary Nicholson, Madeleine Smith (esposa do seu gerente) e Georgiana Burne-Jones (esposa de seu amigo Edward Burne-Jones). Tais mulheres atuaram como “ajudantes” na produção, sendo presumivelmente não remuneradas ou recebendo baixa remuneração. Possivelmente, trabalhavam em suas próprias casas, uma vez que o casamento era a única carreira socialmente aceita para mulheres de camadas médias. Provavelmente, a execução de trabalhos que empreenderam para Morris foi concebida como uma extensão dos “passatempos” femininos de classe média. Com relação à empregada doméstica é possível que a execução de têxteis tenha sido compreendida como extensão do seu trabalho (Calle, 1984). Sendo assim, é notável a presença de alguns estereótipos articulados às mulheres como: o trabalho na esfera privada por “amor”, não-remunerado; serem boas “ajudantes”, mas não criadoras; realizarem passatempos, não trabalho; fazerem artesanato, não design. Na historiografia do design, costuma haver uma ênfase na questão autor-obra que promove um apagamento de diversos atores envolvidos nos processos de produção, circulação, uso e consumo de artefatos. Ademais, quando práticas artesanais são postas em ação pelos setores femininos, estas costumam ser relegadas ao “dom natural” e ao campo da pura execução, sendo distanciadas do conhecimento tecnológico.
Com a ênfase na separação das esferas pública e privada durante o século XIX e estímulos a novas atribuições femininas enquanto consumidoras e decoradoras, Elsie de Wolfe ganhou relevo como pioneira na decoração de interiores nos Estados Unidos, sendo muito requisitada pelos setores abastados. Embora Elsie enfatizasse a ideia de bom gosto sob um viés elitista, destacou-se como a primeira mulher a atuar como decoradora profissional num campo dominado pelos arquitetos. Elsie se beneficiou com estereótipos de gênero que associavam as mulheres com a casa e a decoração dos interiores domésticos, transgredindo os limites de gênero.
No início do século XX, Nair de Teffé – primeira-dama do Brasil, esposa de Marechal Hermes da Fonseca – se tornou a primeira mulher caricaturista do país antes de se casar. Nair obteve formação educacional na Europa, quando no Brasil, a maioria das mulheres ainda era analfabeta. Ela tensionou estereótipos de gênero ao não aderir a criação de ilustrações para o público infantil, uma vez que realizou caricaturas de políticos, militares e burgueses, representações de tom crítico distanciadas de ideias de doçura e delicadeza. Ao caricaturizar mulheres da alta sociedade, fugiu da tentativa comum de transformá-las em pessoas frágeis e adornativas. Ao representar homens, não buscou amenizar a crítica, expondo-os por vezes ao ridículo (Campos, 2016). Sendo assim, tensionou estereótipos de gênero ao criar caricaturas, dialogar com assuntos “intelectuais” e atuar na esfera pública a partir da veiculação do seu trabalho em diversos jornais da época.
Fundada em Munique no início do século XX, a Deutscher Werkbund (Associação Alemã do Trabalho) visou mudar a reputação do design alemão, tornando-o mais competitivo no mercado nacional e internacional. Apesar de em menor número, a Deutscher Werkbund também contou com a atuação de mulheres designers, entre elas: Anna Muthesius, Else Oppler-Legband, Fia Wille, Gertrud Kleinhempel, Margarethe von Brauchitsch, Elisabeth von Hahn, Lilly Reich etc. Na exposição da instituição realizada em Colônia em 1914, mulheres foram responsáveis pela criação do pavilhão feminino, a Casa da Mulher (Haus der Frau), projetada por Margarete Knüppelholz-Roeser. O pavilhão deveria exibir artefatos desenhados somente por mulheres a fim de associá-las à criatividade e à intelectualidade e não apenas à execução. Nele foram expostos tapeçarias, bordados, roupas femininas e infantis, joias, brinquedos, bonecos, móveis, design de interiores, livros, cartazes, pinturas e fotografias. Elas buscaram se distanciar do estereótipo de diletantismo, segundo o qual suas práticas artísticas seriam apenas passatempos, sendo naturalmente descompromissadas, enquanto a “boa forma” seria um produto “naturalmente” masculino. Sendo assim, elas tentaram eliminar o excesso de ornamentos e promover a “eficiência”. Em contrapartida, reforçaram binarismos de gênero, uma vez que entendiam que não deveriam competir com os homens, mas complementar o trabalho deles com seu presumido “dom feminino”. Críticos tiveram dificuldade em conceber a Casa da Mulher como um pavilhão feminino, para alguns deles, ele havia perdido a “graça feminina”, sendo esmagadoramente masculino, ou seja, parecia haver uma “incompatibilidade” entre o moderno e o feminino. Para outro crítico, Peter Jessen, as mulheres designers serviriam melhor à pátria atuando de acordo com a “sua natureza”, bordando, não projetando edificações. Mas para outros críticos, foi considerado um dos melhores pavilhões. Alguns deles teceram “elogios”, afirmando que elas haviam conseguido se emancipar do diletantismo e desenvolver o “órgão funcional masculino” (Stratigakos, 2003).
A Bauhaus, escola alemã de design e arquitetura fundada em 1919, estruturou a aprendizagem com base no curso preparatório (vorkurs) e nos ateliês: cerâmica, tecelagem, metais, mobiliário, fotografia etc. A escola defendia que não houvesse distinção de raça nem de “sexo”, mas o diretor da escola, Walter Gropius, recomendou que ao ingressarem, que as mulheres fossem encaminhadas ao ateliê de tecelagem, pois considerava que este era o espaço criativo “natural” para elas. Outra razão era que Gropius e outros mestres da escola acreditavam que elas pudessem comprometer os princípios estéticos da escola, tornando-a excessivamente “decorativa”. Gropius considerava um risco aos princípios formais da escola a atuação das mulheres em outras oficinas (Campi, 2010).
O ateliê de tecelagem não oferecia certificação e foi por muito tempo desvalorizado, porém tornou-se avançado e um dos mais produtivos e rentáveis devido ao contato com indústrias da época. Entre 1925 e 1931, ele foi dirigido por Gunta Stölz, responsável por uma extensa produção de tapeçarias com motivos abstratos, que representavam as teorias cromáticas de mestres da Bauhaus, tensionando estereótipos de gênero. Anni Albers, vice coordenadora do ateliê, também produziu várias tapeçarias abstratas. O principal objetivo de Otti Berger, outra estudante do ateliê, não era criar peças artísticas únicas, mas desenvolver padrões que pudessem ser produzidos industrialmente. Foi neste momento que o ateliê de tecelagem manual foi transformado em ateliê de design têxtil e estudantes como Anni e Otti tornaram-se designers industriais bem-sucedidas. Elas substituíram Gunta quando deu à luz sua primeira filha. Entre as responsabilidades de Otti estava a produção de tecidos para a Escola Sindical Nacional de Bernau, sob supervisão de Hannes Meyer, então diretor da Bauhaus. Otti analisava e criava “tecidos para interiores”, de acordo com os princípios de Moholy-Nagy sobre estrutura, textura, fabricação e cor, numa estreita relação com a nova arquitetura defendida na época. Otti concordava com a visão de Meyer, que na decoração não havia espaço para superficialidades, pois praticidade e funcionalidade deveriam prevalecer assim como na arquitetura, argumentando:
“Por que nós ainda precisamos de flores, videiras e ornamentos? A própria fábrica está viva!” (Otto, Rössler, 2019).
Marianne Brandt, uma das designers conhecidas da Bauhaus, foi exceção, pois estudou no ateliê de metal e tornou-se mestre, desafiando as interdições da escola. Outras estudantes, como Grete Stern, que frequentou o ateliê de fotografia, Margarete Heymann, referência em cerâmicas modernistas e Wera Meyer-Waldeck, que frequentou o ateliê de carpintaria, contrariando as recomendações de Gropius, construíram carreiras de sucesso após a Bauhaus, mas encontramos escassas informações sobre elas.
Ilustrações, design de brinquedos e de mobiliários direcionados para o público infantil também costumam ser associados, não raras vezes, a áreas de atuação feminina. Estes tipos de artefatos estão vinculados historicamente à relação naturalizada entre mulheres e “instinto maternal”. Possivelmente, várias mulheres foram estimuladas a criar designs para crianças. A alemã Dörte Helm, admitida na Bauhaus em 1919 tinha como objetivo se tornar ilustradora de livros infantis, conforme desejo de seu pai. Alma Siedhoff-Buscher, outra estudante da escola, criou brinquedos educativos e mobiliários inspirados nas novas tendências pedagógicas. Seu conjunto de peças de madeira intitulado “Bauspiel”, inclusive, foi o primeiro produto registrado da escola, comercializado até hoje (Droste, 1994).
A mãe de Charlotte Perriand a aconselhou desde cedo que o “trabalho era liberdade”. Charlotte se interessava pelo modernismo, pela era industrial e pelos novos materiais. Logo após se graduar em uma escola de artes decorativas, se casou com Percy Scholefield (Fiell, Fiell, 2019). Como muitas mulheres da sua geração, ela via o casamento como um rito de passagem para a vida adulta, que poderia lançá-la para uma vida profissional. Seu projeto “bar em um sótão”, para o Salão de Outono de Paris em 1927, foi financiado por seu marido e acabou chamando a atenção de Le Corbusier. Contudo, alguns meses antes, quando procurou trabalho no escritório do arquiteto, Charlotte foi recusada com a justificativa machista “aqui não bordamos almofadas” (Rubino, 2010). Somente após expor em salões renomados, foi admitida no escritório de Corbusier. Ela realizou diversos projetos de móveis de couro e aço tubular em parceria com ele, por vezes, o único a ser creditado pelas criações.
A ucraniana-francesa Sonia Delaunay, filiada ao estilo Art Déco, atuou no campo das artes plásticas e do design (têxtil, moda, figurino, mobiliário, interiores e cenografia). A teoria dos contrastes simultâneos, criada por ela e seu marido Robert, foi aplicada em várias obras e artefatos produzidos por eles. Entretanto, Sonia é notada pelos historiadores por seu sentimento “instintivo” de cor enquanto Robert é reconhecido como autor da teoria cromática. Robert encarna o estereótipo masculino lógico e intelectual e Sonia, o estereótipo feminino instintivo e emocional (Buckley, 1986). No final da década de 1910, Sonia desenhou figurinos para os Balés Russos – comandado pelo empresário Diaghilev. Robert sentiu-se incomodado com a proximidade de Sonia e Diaghilev bem como com a autonomia que a companheira estava conquistando. O fato de ela estar trabalhando em espaços onde ele não estava presente, como o do vestuário e o da decoração, oportunizava que ela pudesse gozar do papel de criadora, abandonando o habitual enquadramento como discípula. A desvalorização de Sonia com relação a Robert também estava articulada aos suportes utilizados por ela, considerados “menos puros” e mais “comerciais” (Pastori, Gruber, 2018).
Um caso interessante é a participação das mulheres na produção dos interiores de automóveis da General Motors nas décadas de 1950 e 1960 nos EUA. “O carro é uma extensão da casa”, pensamento que motivou o designer-chefe da seção de estilo da empresa, Harley Earl, a incluir mulheres designers em seu departamento. Para Earl, a empresa estava acrescentando um “ponto de vista feminino” à GM, percebendo que a presença delas poderia funcionar como uma estratégia de marketing, criou as Damsels of Design (Donzelas do design), mulheres responsáveis pelo design de elementos interiores dos veículos (porta guarda-chuva, armazenamento para brinquedos etc.). Apesar de tensionar o lócus de decoração – da casa para os automóveis -, as mulheres dificilmente atuavam no projeto “global” de criação de carros, sendo limitadas aos seus detalhes (Fiell, Fiell, 2019).
A estadunidense Ray Eames, junto ao marido Charles, criou brinquedos e móveis infantis nos anos 1940/1950, em consonância com a vertente de design orgânico, que ganhou corpo com designers escandinavos a partir dos anos 1930. No entanto, a cadeira infantil com um coração vazado no encosto, desenhada pelo casal, foi atribuída apenas à Ray devido ao seu apelo lúdico e emocional, em outras palavras, um artefato “ingênuo” demais para ter sido projetado por um designer modernista como Charles. Ray também foi acusada por críticos de design de afastar o parceiro do modernismo em direção à decoração, à cor e ao artesanato, embora ambos tomassem decisões de forma conjunta. Além disso, algumas das peças desenvolvidas pelo casal com a utilização de metal e couro, ou seja, com referências à estética modernista, só foram creditadas a Charles (Kirkham, 1998).
Estella Aronis, designer brasileira, também teve sua produção apagada pela abordagem autor obra. Ela estudou gravura e desenho com Poty Lazarotto no MASP e foi uma das primeiras alunas do IAC (Instituto de Arte Contemporânea). Trabalhou por um tempo na loja de Joaquim Tenreiro, criou padronagem para a empresa Matarazzo Boussac na época em que estudou no IAC. Ao concluir os estudos, casou-se e, por pressão do marido, parou de trabalhar. Voltou ao mercado de trabalho alguns anos mais tarde quando viúva e com filhos para sustentar, atuando no escritório do ex-colega do IAC, Alexandre Wollner, com que se casou. Trabalhou em diversas áreas do design: gráfico, identidade corporativa, produtos, têxteis e, ainda assim, encontramos poucas informações sobre a sua produção. Quando integrava o escritório de Wollner, desenvolveu uniformes para a empresa Equipesca, considerados os primeiros exemplares ergonômicos do país. Ela também projetou sistemas de sinalização para os aeroportos de Congonhas e Guarulhos nos anos 1980, tensionando áreas de atuação reconhecidas como masculinas (Leon, 2009).
Historicamente, mulheres foram excluídas da política pois, a priori, seriam seres menos racionais e estrategistas. Essa pode ser uma das hipóteses pelas quais o design da marca dos Panteras Negras, partido político fundado nos EUA em 1966, costuma ser atribuído ao designer afro-estadunidense Emory Douglas, que atuou como Ministro da Cultura. A marca passou por diversas mudanças, tendo sido (re)desenhada em momentos distintos por três designers mulheres, duas delas brancas e uma negra: Dottie Zellner, Ruth Howard e Lisa Lyons – esta última, inclusive, realizou projetos gráficos para diversos movimentos sociais, inspirando-se por vezes nas produções do Atelier Populaire (Cushing, 2018)..
Designers negras parecem ter sido completamente apagadas dos livros de História do Design, sendo ainda mais desvalorizadas do que as mulheres brancas pela interseção entre capitalismo, patriarcado e racismo. Logo, a contribuição da designer e educadora afroestadunidense Cheryl Miller é de grande valia, pois percebendo a dificuldade que designers negros enfrentavam para ingressar no mercado de trabalho, realizou sua pesquisa de mestrado sobre o respectivo problema. Em 1985, ela obteve o título de Mestre em Communications Design pelo Pratt Institute com a dissertação “Transcending the Problems of the Black Designer to Success in the Marketplace”, que deu origem ao popular artigo da PRINT Magazine de 1987, “Black designers: missing in action”. Nas suas pesquisas, ela mostrou que estudar design para muitos estudantes negros era visto como um luxo, pois a maior parte da população negra estadunidense fazia/faz parte da classe trabalhadora. Sendo assim, são comuns a falta de apoio familiar e o ingresso em universidades com instalações defasadas. A rede de contatos – que propicia indicações, conselhos e inspirações – costuma ser mais restrita para pessoas negras. Ademais, em vista da estrutura racista da sociedade estadunidense, é comum ver pessoas negras atuando mais no lado da produção do que no lado da criação. Cheryl afirmou que as negativas que recebia eram transpassadas por dúvidas: seu trabalho tinha pouca qualidade ou era o fato dela ser mulher e negra? Desse modo, ela aconselha que a juventude negra procure realizar seus trabalhos com qualidade superior aos da juventude branca a fim de obter maior visibilidade. Estas publicações fomentaram discussões sobre diversidade, equidade, inclusão e segregação racial no design que reverberam até hoje não apenas nos Estados Unidos, mas em outros países como o Brasil.
É importante dar continuidade a delimitação de estereótipos de gênero que têm prejudicado ou possibilitado a atuação de mulheres designers também a partir de uma perspectiva de raça/etnia. Também seria possível ampliar o estudo, abarcando estereótipos relacionados a outras minorias sociais tais como pessoas gordas e com deficiência, embora as fontes sejam bastante limitadas.
Considerações
Os estereótipos de gênero contribuíram historicamente para a exclusão, interdição e desvalorização do trabalho feminino no campo do design, embora possam ter possibilitado vantagens em alguns casos. Ao longo do minicurso, percebemos, além dos estereótipos de gênero, outros fatores de invisibilização feminina como: o conceito de design restrito à revolução industrial; a historiografia andro e eurocentrada do design; parcerias matrimoniais, familiares e/ou de amizade com homens; a divisão sexual do trabalho; a exclusão de mulheres de academias de arte, cursos de arquitetura e de algumas disciplinas de escolas de design; estruturas de opressão e suas interseções. Em contrapartida, observamos fatores de visibilização: classe social privilegiada; branquitude; bolsa de estudos, divulgação de mulheres na mídia; redes femininas de apoio; relações de parentesco/parceria com homens (que podem, paradoxalmente, diminuir ou aumentar o apagamento feminino); e conquistas feministas.
É fundamental nos atentarmos ao contexto no qual foram escritos livros sobre história do design. A história do modernismo foi escrita, em parte, por homens conservadores nos anos 1950, uma década difícil para as mulheres. Sendo assim, a contribuição feminina foi ignorada, em grande medida, especialmente quando suas criações se moveram de forma fluida entre arte e design. Ademais, por muito tempo, mulheres foram consideradas apenas ajudantes dos seus famosos maridos (Pastori, Gruber, 2018). Também vale a pena comentar que, em vista do viés modernista na historiografia do design, poucos estudos relevantes foram feitos a respeito dos elementos artesanais presentes na produção de designers como no caso do casal Eames. Apenas com a ascensão do pós-modernismo, tais aspectos foram discutidos com maior dedicação (Kirkham, 1998).
A articulação entre História do Design & Estudos de Gênero é um caminho indispensável para moldarmos narrativas alternativas e plurais sobre design. Afinal, a maneira como o design é teorizado-produzido é importante, uma vez que ao transformar ideias em formas sólidas e duradouras, ele parece ser a verdade em si mesma, agindo sobre nós, regulando nossos modos de pensar, sentir e estar no mundo (Forty, 2007). O design não é um campo imutável; ao contrário, está sujeito a transformações sociais. Logo, a partir de processos de conscientização, podemos tensionar estereótipos e processos de apagamento, colaborando para uma historiografia do design mais justa, democrática e diversa.
Notas de Rodapé
1. Neste texto damos relevo para designers mulheres e homens cis (indivíduos cujas identidades de gênero estariam supostamente em “conformidade” com o sexo anatômico) em vista das referências disponíveis. Apesar de não naturalizarmos os binarismos de gênero, os utilizamos de forma estratégica, uma vez que não podemos descartá-los como irrelevantes, visto que continuam influenciando nossas vidas.
2. A experiência do minicurso originou o projeto Teoria do Design (www.teoriadodesign.com), que divulga resultados de pesquisas sobre História do Design, que visam conferir maior visibilidade às relações de poder que constituem o campo, sobretudo sob a ótica de gênero, raça e classe.
3. Pois, além de naturalizar binarismos de gênero, excluindo pessoas trans, não contempla interseções com outras estruturas de opressão como o racismo e o classismo, por exemplo.
4. Até então entendia-se que existia apenas um sexo anatômico, cujos exemplos mais “perfeitos” eram julgados como masculinos e os menos “desenvolvidos” como femininos.
5. May se tornaria uma exceção à divisão sexual do trabalho. Treinada por seu pai, assumiu o comando da oficina de bordados da empresa em 1885, aos 23 anos.
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