Mulheres na tipografia: uma história conturbada (parte 1)

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A partir de Martha Scotford (1994), entendo que a história “ordenada” do design pode ser compreendida como a história convencional/tradicional, ou seja, aquela que costuma dar foco para as práticas realizadas sobretudo por homens brancos da Europa Ocidental e da América do Norte, contando, não raras vezes, com um rol de informações oriundas dos mais diversos tipos de fontes (projetos, revistas, jornais, premiações etc.). Em outras palavras, uma história andro e nortecêntrica, que tende a naturalizar visões alinhadas à branquitude, ao machismo e ao pensamento colonial. Em contrapartida, a história “conturbada” pode ser entendida como a história caótica e fragmentada das minorias sociais, de designers “sem rosto”, sendo moldada a partir de sobras, fiapos, notas de rodapés e de arquivos, quando existentes, por vezes, empoeirados, deixados de lado. A história “conturbada” procura investigar e construir a história de grupos minoritarizados e subalternizados, abarcando abordagens alternativas que buscam tensionar e desnaturalizar as mais variadas formas de opressão, dando visibilidade para relações de poder.

Na obra O Olimpo do poeta francês Jaques Grevin (1538-1570) foi moldada a primeira manifestação literária alegórica a respeito de Typosine, a musa da tipografia/imprensa. Typosine seria o remédio contra o erro e a ignorância em benefício da ciência e da verdade. Nos séculos posteriores, um interesse em aprender sobre as origens da imprensa despertou entre estudiosos europeus. Nesta conjuntura, ilustradores iluministas articulados ao estudo da tipografia retomaram a figura de Typosine, construindo sua imagem em diálogo com representações acerca de Minerva, deusa romana das artes, do conhecimento e da sabedoria. Uma das gravuras da obra Anais da impressão desde a invenção da arte até o ano de 1664, por exemplo, mostra Impressora com os atributos de Minerva em uma oficina de fundição de tipos. Seu braço direito está apoiado sobre uma prensa e ela está rodeada por vários putti[1], que a seus pés compõem letras e montam uma forma tipográfica (GRAVIER e LÓPEZ, 2011).

Michael Maittaire, Annales typographici ab artis inventae origine ad annum 1664 (Londres, 1741). Fonte: GRAVIER e LÓPEZ (2009).

Graças à imagem criada pelos ilustradores e historiadores da arte tipográfica iluminista, Minerva, deusa da sabedoria e das artes e padroeira dos artesãos, também passou a ser considerada a padroeira das profissões ligadas à impressão. São muitos os outros exemplos que a iconografia nos oferece em que a Imprensa é representada a partir de uma figura feminina. No entanto, apesar da iconografia alegórica da arte da impressão ser baseada em uma figura feminina, a presença de mulheres nas oficinas tipográficas tem sido tradicionalmente omitida, ignorada ou subestimada por historiadores desta disciplina (GRAVIER e LÓPEZ, 2009; 2011).

Muitos dos tipógrafos tiveram/têm seus trabalhos reconhecidos e suas teorias têm sido estudadas em cursos de design de diversos países. Contudo, uma pequena parte deles, são mulheres. A presença feminina em cargos de maior status nas oficinas tipográficas e em fundações de tipos parece ter sido praticamente nula. Ou, como já indicado, a atuação de mulheres foi silenciada, em grande medida, pelos historiadores do design. Pois, a escassa atenção que a historiografia prestou ao trabalho realizado por impressoras contrasta com o alto número de impressos nos quais mulheres, em geral viúvas de tipógrafos, aparecem nas capas ou colofões como responsáveis pela edição (GRAVIER e LÓPEZ, 2009; 2011).

Uma das desculpas que tem sido usada para justificar a desconsideração da atuação das mulheres no campo da tipografia é que elas ocupavam oficinas ocasionalmente. É verdade que algumas mulheres, relegadas ao trabalho doméstico e ao cuidado familiar, tornavam-se tipógrafas apenas quando necessidades econômicas familiares surgiam, se encarregando dos negócios da família. No entanto, estas evidências não podem ser usadas para negar a experiência técnica e/ou comercial das mulheres, questionando sua capacidade intelectual. Fato é que são muitas as obras conservadas nas quais estão atribuídas a mulheres a responsabilidade de sua impressão (GRAVIER e LÓPEZ, 2011).  

Nesta conjuntura, identificar e difundir contribuições de mulheres no âmbito da tipografia trata-se de uma reparação histórica, sendo fundamental para a construção de uma história mais justa e democrática. Portanto, é crucial dar visibilidade às práticas realizadas pelas mulheres na tipografia cujos investimentos, juntos aos de outros profissionais, pavimentaram o campo do design nos dias atuais.

Sendo assim, a série em questão aborda – de maneira breve, dispersa, fragmentada e ligeiramente conturbada – a atuação dos setores femininos no campo da tipografia. Vale a pena pontuar ainda que utilizo a palavra “tipografia”, considerando seus diversos sentidos: a) processo de impressão (no qual se usam caracteres móveis para imprimir palavras entre outros tipos de signos); b) lugar onde se imprime textos (oficina tipográfica/ gráfica); c) conjunto de caracteres num estilo específico (os termos fonte/tipo também são compreendidos como correlatos). A série busca dar relevo para questões de gênero, abarcando histórias e experiências, sobretudo, de mulheres dos continentes europeu e americano.    

REFERÊNCIAS

SCOTFORD, Martha. Messy versus Neat History: toward an expanded view of women in graphic design. Visible Language, vol. 28, n. 4, 1994, pp. 367-387.

GRAVIER, Marina Garone e LÓPEZ, Albert Coberto. Huellas invisibles sobre el papel: las impressoras antíguas em España y México (siglos XVI al XIX). In: Locus, revista de história, Juiz de Fora, v. 17, n. 02, 2011, p. 103-123.

GRAVIER, Marina Garone e LÓPEZ, Albert Coberto (eds). Las musas ignoradas. Estudio historiográfico del papel de la mujer em el ámbito de la imprenta. Muses de la imprenta. La dona i les arts llibre (segles XVI-XIX), Barcelona, 2009, p. 21-41.  

Texto: Maureen Schaefer França

[1] Putti é a forma plural de putto (do latim putus ou do italiano puttus, quer dizer: menino), um termo que, no campo das artes, refere-se a pinturas ou esculturas de um menino gordinho e nu, representado às vezes com asas, derivando da figura mitológica grega do cupido jovem, símbolo do amor e da pureza. Os putti são seculares e representam uma paixão não-religiosa. No período dos séculos XVI e XVII, infantes alados eram universalmente entendidos na arte como representações de deuses do amor ou cupidos; não obstante, essa identificação iconográfica ainda persiste. Fonte: BORGES, Silvana. O estudo iconográfico dos Putti na restauração da Igreja Matriz da Freguesia do Ó. In: Revista Restauro.  Disponível em: https://revistarestauro.com.br/o-estudo-iconografico-dos-putti-na-restauracao-da-igreja-matriz-da-freguesia-do-o/. Acesso em: 28/04/23.

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