O gênero das estampas e a decoração “sem frescura”

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A associação entre estampas florais, delicadas e ornamentais com as feminilidades é antiga. Adrian Forty, ao analisar os primeiros produtos industriais, ainda no século XIX, identifica diferenças de gênero em vários artigos, desde aqueles usados na diferenciação na esfera pública, como roupas e acessórios, até os de uso pessoal privado. Escovas de cabelo para homens costumavam ser ovais, sem cabos e sem ornamentos, enquanto as escovas para mulheres exibiam formas curvas, possuíam cabo e ornamentos (figura 1). Os relógios de pulso masculinos eram maiores do que os femininos e tinham números romanos; os relógios destinados às mulheres eram menores e com números arábicos, mais curvilíneos e considerados mais delicados. Delicadeza, fragilidade, sensibilidade eram características atribuídas às mulheres, consideradas mais fracas fisicamente em relação aos homens. Essa visão influenciou uma grande quantidade de artigos decorados com motivos delicados e curvilíneos. Forty concluiu que a diferenciação atendia “ideias aceitas do que é apropriado para homens ou mulheres – em outras palavras, por meio das noções de masculinidade e feminilidade, que não se referem a diferenças biológicas, mas a convenções sociais” (2007, p.92).

Fig.1. Objetos de desejo. Adrian Forty, 2007.

Até mesmo um produto simples e supostamente neutro, como um pacote de lenços de papel, pode comunicar diferenças quanto ao gênero. Como observaram Pat Kirkham e Judy Atfield (1996), os lenços voltados ao público masculino possuíam embalagens em cores neutras e pouquíssimos detalhes, enquanto as embalagens direcionadas ao público feminino exibiam tons pastéis ou tonalidades de rosa e motivos florais. Produtos identificados como femininos são macios, possuem formas sinuosas, cores claras e geralmente exibem algum tipo de ornamento, tais como os motivos florais. Já os produtos dirigidos aos homens são caracterizados por formas complexas, angulares, cores escuras e valorizam desempenho, perigo ou desafio (EHRNBERGER; RÄSÄNEN; ILSTEDT, 2012).

Fig. 2. Interior vitoriano: estampas florais eram muito valorizadas na decoração.

Durante a era vitoriana (figura 2), no século XIX, a casa ganha status de local de exílio e refúgio das aflições e perigos do mundo exterior. A decoração dos interiores domésticos deveria representar o local de descanso, de união familiar e harmonia. A ideia era que ao entrar em casa, o homem burguês/trabalhador/provedor da família, esquecesse dos problemas da esfera pública e do trabalho. Nessa visão, a casa deveria ser decorada com sofisticação e zelo, expressando a personalidade da dona da casa e o poder econômico do marido/provedor. A decoração dos interiores domésticos era composta por tecidos para almofadas, estofados, cadeiras, cortinas, toalhas, tapetes e papéis de parede. Os motivos florais eram muito frequentes, assim como motivos inspirados pela natureza, como folhas, folhagens e ramos, temas que também agradavam a moral cristã vitoriana. O movimento Arts and Crafts, que propunha um revival do artesanato e das antigas guildas medievais, como proposta de valorização do trabalho e do saber artesanal, como resistência aos efeitos da mecanização e industrialização, aperfeiçoou os motivos florais e naturais em estampas sofisticadas e bem estruturadas, nos tecidos e papéis de parede (figura 3). As máquinas de costura foram adaptadas e decoradas com motivos florais e curvilíneos para serem aceitas e incorporadas ao espaço doméstico, distinguindo-se da estética industrial dos teares e máquinas das fábricas no século XIX. Estampas com motivos florais são muito utilizadas ainda hoje no vestuário e na decoração dos interiores domésticos, sendo associadas às feminilidades.

Fig. 3. Estampa Arts and Crafts.

A noção de que certas cores e atividades são mais “adequadas” aos homens é constantemente reproduzida em revistas especializadas, programas de decoração exibidos pela televisão aberta, a cabo e blogs. Nos últimos anos, diversas mídias têm afirmado que a decoração não é um assunto interditado aos homens. De acordo com a matéria Pegada masculina, publicada na revista Casa e Jardim, os homens investem em “peças de design, cores sóbrias como cinza e marrom, e materiais rústicos, como cimento e tijolos, e não pode faltar espaço para coleções e hobbies”.

A decoração masculina caracteriza-se por um repertório formado por discursos sobre representações e usos previstos para os espaços voltados aos homens e pelas materialidades desses discursos. Deste modo, padrões cromáticos, formas, texturas e tipologias de objetos são associados aos ambientes e ganham conotações masculinas. A decoração pode ser considerada um exemplo do “relacionamento simbiótico entre os objetos domésticos e a formação de identidades sociais diferenciadas pelo gênero” (CARVALHO, 2008, p. 25), pois os discursos sobre usos, comportamentos e a relação com o espaço doméstico são formadas na interação com visualidades e materialidades dos artefatos inseridos nos interiores domésticos.

Nos livros sobre arquitetura de interiores e decoração, encontramos sugestões para ambientes considerados masculinos, como os escritórios, que devem móveis “com predominância de linhas retas, texturas rugosas e foscas”, porque a ‘conotação masculina’ “está relacionada à sobriedade, que facilita a concentração no trabalho” (MANCUSO, 1998, p. 33).

Fig. 4. Apartamento do ator Malvino Salvador. Casa e Jardim, 2015.


A matéria “Charme sem frescura no apê de Malvino Salvador” (figura 4) publicada na revista Casa e Jardim em 2015, exibe uma decoração classificada como masculina e composta basicamente por tons de cinza. De acordo com o arquiteto responsável, o ator considerava frescura o tampo da mesa de jantar na cor vinho e tecido verde nos móveis da sala, pois “queria tudo cinza” (CASA E JARDIM, 2015). Às preferências de cor, declaradas pelo ator, somam-se as referências às atividades e hobbys, como as luvas de boxe e fotografia do pugilista Mohamed Ali.

Fig. 5. Casa de Eduardo Mendes, do Homens da Casa, 2016.

Na sala do publicitário Eduardo Mendes (figura 5), do blog Homens da Casa, a decoração é formada pelas tonalidades de preto, cinza e branco. As formas geométricas do tapete e da mobília de madeira foram atenuadas pelas formas curvas do estofado, da poltrona e da lata de óleo transformada em mesa lateral. As capas de almofadas, nas cores branco, preto e cinza, possuem mensagens que reproduzem expressões usadas nas redes sociais, como o “manda nudes, retribuo”, em tipografia curva que simula os tipos escritos à mão.

Na proposta do blog Homens da Casa, expressões como “decoração sem frescura” e “frufru” são usadas para designar a decoração com muitos ornamentos, com trabalhos manuais como bordados e crochês, estampas florais e ambientes coloridos. Os termos são empregados ainda para se referir a comportamentos supostamente afetados, decoração e artigos considerados “fofos” e também para dicas de decoração tidas como complicadas.
 

A coleção “antifrufru” (figura 6) era composta por almofadas e canecas que misturavam estampas florais, consideradas mais suaves ou delicadas, com frases com palavrões (“foda-se”, “fuck you”) em tipografias curvas e rebuscadas. O contraste adotado pelo proprietário do blog, entre a tipografia curva na cor branca, que sugere a escrita cursiva e delicada, associada às feminilidades, e o conteúdo verbal mais agressivo, teve como objetivo “zoar a história de que a decoração tem que ser fofinha” (HOMENS DA CASA, 2014). Mendes afirmou ainda nesta publicação sobre a coleção antifrufru que o Homens da Casa não é um blog de decoração especificamente masculina, mas uma visão pessoal sobre decoração:
 
“o blog é a minha visão de decoração que pode e deve ser adaptada pra casa de qualquer leitor. É o que eu sempre falo: decoração não tem sexo, tem personalidade! (…) A linha Anti Frufru da HC Store é cheia de produtos que zoam com essa história toda de que decoração tem que ser fofinha demais ou descolada demais ou industrial demais ou etc… Nós todos somos uma mistureba de muita coisa. Por isso juntei dois extremos pra fazer produtos que agradem geral. É pra matar aquela vontade, que vem de vez em quando, de soltar um palavrão pra extravasar sem perder a ternura” (HOMENS DA CASA, 2014).

O comentário de Mendes expõe as contradições de suas estratégias, como palavrões e ternura e uma crítica à decoração entendida como “fofinha”, delicada, ornamental e decorativa. A contradição na linha de produtos é a de uma suposta liberdade na decoração que rejeita algumas características associadas às feminilidades, como por exemplo, os temas florais e a escrita delicada e cursiva. A decoração não tem sexo e também não tem frescura de acordo com a visão do criador do blog.

A proposta de uma decoração “sem frescura” permite discutir como a decoração é uma atividade marcada por uma especificidade de gênero, desvalorizada enquanto atividade profissional, justamente por ser “coisa de mulher” ou de “frescos”. Mais especificamente, a oposição e a diferença definem aquilo que pode ou não ser considerado “frescura”, convidando a uma reflexão mais complexa sobre sujeitos e práticas legitimados na sociedade.

Referências

Cresto, Lindsay Jemima. Colocando a mão na massa: tecnologias de gênero na decoração de interiores no blog Homens da casa. Tese (Doutorado em Tecnologia e Sociedade) – Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, UTFPR, Curitiba, 2019.

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