O espaço doméstico tem sido tratado, nos últimos anos, como um cenário singular, templo de realização, descanso, sonho, afetividade e afirmação da identidade e autenticidade. As revistas de decoração não discutem tendências ou regras definidas para decorar, mas sugerem que fatores subjetivos tais como liberdade, humor, alegria e estilo próprio sejam buscados e afirmados no espaço doméstico. Como afirma matéria publicada na revista Casa e Jardim, “Mais do que local de abrigo e proteção, a casa é nossa terceira pele, nossa esfera de reconhecimento.” (SCOFORO, 2009). Nesta esfera de reconhecimento é fundamental ser feliz, encontrar objetos que sejam uma extensão da personalidade do (a) morador (a).
A felicidade traduz-se na coleção de objetos de família, nas fotos de viagens e souvenires variados. A revista Casa e Jardim aconselha a destacar móveis e objetos “que atravessaram gerações”(SCOLFORO, 2009, p.100) para ilustrar a própria história de vida, recordando os bons momentos. Outro conselho decorativo envolve a mistura de peças antigas e novas, novamente como reafirmação de uma história pessoal significativa, em harmonia com o momento atual.
A afetividade enfatizada no lar, por meio da liberdade de escolha de objetos decorativos e mobiliário, é apresentada em ambientes únicos, classificados como atuais, criativos e ousados. A
felicidade proposta nestes ambientes aproxima-se dos princípios da arte kitsch, pois é na “esfera pessoal do indivíduo onde se exerce de maneira construtiva sua relação com as coisas” (MOLES, 1994, p.49). O lar é um campo privilegiado do kitsch, porque é onde se desenvolvem as relações e interações com as coisas que nos cercam, contribuindo na construção de um cenário pessoal repleto de objetos que evocam significados específicos.
O kitsch e as coisas
O termo kitsch tem origem no alemão, verkitschen, com sentido de trapacear, enganar. O termo é geralmente empregado para designar o design vulgar, popular e as cópias de má qualidade. O kitsch é considerado a antítese do Good design, um conceito ligado à racionalidade na atividade projetual no design, associado ao modernismo. Este conceito foi promovido como um tipo de selo de qualidade e bom gosto no design, incluindo concursos e premiações. Nos anos 50, o termo kitsch foi atribuído aos produtos classificados como mal acabados, que tentavam imitar as características dos produtos Good Design, mas pouco se assemelhavam a estes (FIELL, 2005). O kitsch é muito mais abrangente do que um debate sobre o bom gosto, pois permeia as interações das pessoas com os objetos, com as coisas que nos cercam. O kitsch está presente no cotidiano, como acredita Moles (1994, p.32):
o kitsch é essencialmente democrático: é a arte do aceitável, aquilo que não choca nosso espírito por uma transcendência fora da vida cotidiana, nem por um esforço que nos ultrapassa (..) O kitsch está ao alcance do homem, ao passo que a arte está fora de seu alcance, o kitsch dilui a originalidade em medida suficiente para que seja aceita por todos
O kitsch pode ser definido sob duas formas diferentes: pelas propriedades formais dos objetos ou dos elementos do ambiente; e pelas relações específicas que o homem mantém com os objetos (MOLES, 1994). O kitsch nos convida a uma discussão sobre a relação entre “o ser e as coisas, um novo sistema estético ligado à emergência da classe média, e da civilização de massa que somente reforça os traços dessa classe.” (MOLES, 1994, p.29). Convida-nos a refletir sobre esta relação com as coisas, como nos envolvemos e como reafirmamos valores e significados por meio dos objetos.
O kitsch e o design pós-moderno
Os designers pós-modernos rejeitaram a estética universal do modernismo e, em seu lugar, adotam uma linguagem feita de códigos, metáforas e referências múltiplas. Os pós-modernos acreditavam que as concepções do modernismo e seus ideais tinham se convertido em
forças de manipulação para o consumo. Deste modo, procuraram uma lógica não funcionalista, que pudesse oferecer uma experiência significativa para o (a) usuário (a). Moles (1994, p.167) retrata crise do funcionalismo:
O funcionalismo constitui-se através de todas as contradições de uma gênese atormentada, enquanto componente necessário de qualquer forma estética ou técnica. Constitui, pois, um fator essencial da vida cotidiana, embora seu próprio sucesso tenha engendrado esta crise. Seu princípio básico estabelece que os objetos devem ser rigorosamente determinados por sua função. Introduz uma ideia de rigor, de disciplina, e por esta via, de ascetismo (…). Uma de suas consequências traduz-se pela luta sistemática contra toda e qualquer irracionalidade, contra tudo que parece excrescente à função, inclusive a decoração.
É justamente na corrente contrária ao funcionalismo que o kitsch ganha espaço. Primeiramente como crítica, ironia, sátira, depois como uma atitude no design, uma nova possibilidade, recheada de promessas. O kitsch rompe a barreira dos objetos isolados e passa a integrar a decoração da casa, despedindo-se de sua classificação vulgar, falsa ou menor.
O kitsch e a decoração
Na decoração, o kitsch é um componente importante na satisfação de desejos e na construção de um ideal de felicidade. É no espaço doméstico, segundo Moles (1994, p. 189), que o indivíduo pode “constituir seu microuniverso, a concha personalizada onde passa a maior parte de sua vida independente e sobre a qual exerce seu império: seu apartamento”.
Um exemplo do apartamento como microuniverso é o que foi publicado na revista Casa e Jardim (2009), onde o proprietário se orgulha da decoração, elaborada a partir de peças garimpadas” em feiras, lojas, viagens, depósitos e até caçambas. (ULIANA, 2009). O garimpo de peças resultou em uma decoração única, “mais atual, impossível”, de acordo com a revista ULIANA, 2009, p.67). Na sala de estar, um canto exibe a mesa lateral com base em forma de anão de jardim, uma preciosidade kitsch, e uma pequena mesa com a coleção de peças douradas: jarros, vasos, uma cabeça de rato, uma imitação de bule árabe de metal, feita de plástico
A coleção de peças douradas é caracterizada pelo critério de heterogeneidade de Moles, e também pelo acúmulo de objetos, sem que mantenham entre si alguma relação ou ordem que oriente a escolha e a disposição. Os objetos foram selecionados desprezando-se sua função, demonstrando a inadequação, como um fator psicológico do kitsch, de acordo com Moles. Esta inadequação, segundo Moles, é proveniente de nossa relação com os objetos, quando em civilizações passadas, atribuía-se uma determinada função de uso ao objeto, função esta que lhe conferia sua “significação fundamental a que se juntavam as demais” (MOLES, 1994, p. 25).
Esta simplicidade funcional é negada pelo kitsch, que incorpora significados aos objetos, evocando sua inutilidade. A coleção de jarros destaca-se não pela função fundamental, mas pelo critério do acúmulo e da organização de uma coleção heterogênea, que possui como elemento comum a cor dourada.
Outro critério kitsch é a recusa da autenticidade, com a artificialidade sugerida na escolha de materiais e cores. O banheiro é um cenário kitsch, do plástico ricamente decorado com a visão paradisíaca de uma praia tropical: o azul intenso, pássaros tropicais e belas palmeiras. O contraste dos materiais, como a pia de concreto e a cerâmica, associados ao plástico da cortina do box, referenciam a dissociação de materiais adotados na arte kitsch, sem vínculos uns com os outros.
Considerações
O kitsch, que anteriormente já foi associado aos objetos de mau gosto, ganha novos significados ao legitimar a busca de felicidade e satisfação no espaço doméstico. Esta revalorização do antigo kitsch, como a ousadia e inovação dos tempos contemporâneos,
desloca a discussão do papel do consumo de artefatos e da relação que desenvolvemos com eles, na esperança de projetar nestes objetos um traço de nós mesmos. De acordo com Moles (1994, p. 194), “ser ‘civilizado’ é o mesmo que ter muitas necessidades, e o homem
civilizado persegue a adequação dos objetos às necessidades”. O kitsch empregado na decoração assume que a experiência em nossa relação com as coisas é uma necessidade, tal qual a felicidade. Como acredita Moles (1994, p. 38) “o homem adquire objetos para seu uso, enriquece-se de coisas como de experiências” (MOLES, 1994, p. 38). E o objetivo de nos envolvermos com os objetos e com as pessoas é justamente criar experiências (MARGOLIN, 2002, p.40).
Desta maneira, o kitsch nos desafia a vivenciar experiências significativas, marcantes, alegres. Desafia ainda a moralidade modernista, fundamentada na funcionalidade, e transforma o valor dos objetos que se destacam pela irracionalidade, mas que nos convidam a saborear a tão sonhada felicidade.
* Artigo apresentado no IV Simpósio Nacional de Tecnologia e Sociedade, em Curitiba, 2011. Disponível em: http://www.esocite.org.br/eventos/tecsoc2011/cd-anais/arquivos/interface/artigos-buscar.html
Referências
BAVA, Cristina; GUROVITZ, Lúcia S.; MENDONÇA, Isabella. Jeitos atuais de morar. Casa Claudia. São Paulo, Editora Abril, ano 33, n.05, p.64-79, mai. 2009.
BOTTOM, Alain de. A arquitetura da felicidade. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2006.
COELHO, Teixeira. Moderno pós-moderno. 2. ed. São Paulo: L&PM, 1990.
FIELL, Charlotte and Peter. Design do século XX. Itália: Taschen,2005.
MARGOLIN, Victor. The politics of the artificial: essays on design and design studies. Chiicago: The Unievrsity of Chicago Press, 2002.
MICHAELIS, Dicionário Inglês-Portguês. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 1989.
MOLES, Abraham. Kitsch: a arte da felicidade. São Paulo:
Perspectiva, 1994.
QUINTAS, Simone; LAUTON, Thaís. A Nova Simplicidade. Casa e Jardim, São Paulo, Editora Globo, n.653, p.54-60, jun. 2009.
SCOLFORO, Carol. A moda é ser feliz. Casa e Jardim. São Paulo, Editora Globo, ano 56, n.656, p.94-100, set. 2009.
SGARIONI, Mariana. Coisas da vida. Vida Simples. Jul. 2008. Disponível em: Acesso em: 120 out. 2009.
TAMBINI, Michael. O design do século. São Paulo: Ática, 1997.
ULIANA, Nuria. Dom de garimpar. Casa e Jardim. São Paulo, Editora Globo, ano 56, n.653, p.66-75, jun. 2009.