A MÃO DO POVO BRASILEIRO: CULTURA MATERIAL POPULAR E OS PROJETOS MODERNIZADORES BRASILEIROS (1969 E 2016)1 – YASMIN FABRIS2
Autoria: Thabata J. B. Pinheiro3
A tese se debruça sobre duas encenações da exposição “A Mão do Povo Brasileiro” no Museu de Arte de São Paulo (MASP), buscando analisar como essas montagens tensionaram os projetos de modernização no Brasil em dois momentos sócio-históricos distintos. A primeira montagem da exposição, em 1969, sob a curadoria de Lina Bo Bardi, coincidiu com a inauguração da nova sede do MASP. Já a reedição em 2016 fez parte de uma série de ações lideradas por Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu na época. A autora se propõe a demonstrar como essas encenações utilizaram a cultura material popular em busca da modernização brasileira, utilizando a materialidade da exposição e documentos relacionados como base para sua análise.
O problema de pesquisa é delineado da seguinte forma: “Como as encenações da exposição A Mão do Povo Brasileiro, que ocorreram em 1969 e 2016, narram (ou contra narram) sobre os projetos de modernização brasileiros?”. A partir dessa questão, a autora define seu objetivo como sendo localizar, nas encenações da mostra, os discursos sobre os projetos de modernização brasileiros em ambos os períodos estudados. A estratégia metodológica adotada baseia-se principalmente no estudo de documentos. Foram realizadas pesquisas documentais nos arquivos do MASP e no Instituto Bardi, acessando documentos relacionados às montagens das exposições. A análise dos dados levantados foi feita por meio da triangulação, visando reconstruir os eventos em sua complexidade.
Os capítulos da tese abordam diferentes aspectos das montagens da exposição e seus contextos. No primeiro capítulo, “O MASP Popular”, é apresentado um panorama histórico do museu, destacando suas bases conceituais. No segundo capítulo, “Experiências modernizadoras: A mão do povo brasileiro em 1969”, a autora analisa a primeira montagem da exposição, contextualizando-a no cenário político, social e econômico da época. Já no terceiro capítulo, “A construção de um museu plural, ou melhor, decolonial?”, são discutidas as mudanças conceituais e ações que possibilitaram a remontagem da exposição em 2016. Portanto, a forma da tese segue uma lógica que se inicia com um contexto mais amplo e afunila ao chegar na primeira exposição, e em seguida, na segunda exposição, o que permitiu destacar contrastes, diferenças e semelhanças entre elas, evitando repetições desnecessárias.
A fundamentação teórica da tese inclui a filiação às teorias de cultura material por Myers4 e Miller5, discurso por Martín-Barbero6, dispositivo por Foucault7, arena expositiva por Bourdieu8, agência por Gell9 e decolonialidade por Mignolo10 e Quijano11. Também é importante destacar a filiação da autora à Mudança Epistemológica e Política proposta por García Canclini12, ao adotar seu conceito de hibridização. Em alguns momentos da tese é utilizado o termo “decolonial” e em outros o “descolonial” , em nota de rodapé a autora comenta sobre o uso dos termos por diferentes autores, onde afirma que o uso da palavra não é consensual entre eles, enquanto Quijano utiliza o termo “descolonização”, Mignolo emprega os dois termos em suas produções, pois acredita se tratar de uma diferenciação causada pela tradução da linguagem anglo-saxã e não de uma demarcação de diferenciação conceitual. Porém, há autores que afirmam haver sim uma diferenciação conceitual dos termos13, possivelmente uma nota comentando a aderência por um dos usos seria uma boa solução para evitar dúvidas.
As conclusões da tese destacam as diferenças nas representações da cultura popular nas duas montagens da exposição, e como essas representações se relacionaram com as narrativas sobre a modernidade brasileira. Enquanto em 1969 houve uma ênfase nos aspectos político-econômicos e culturais, em 2016 a montagem promoveu a ideia de um museu plural, inclusivo e decolonial. A autora argumenta que as montagens da exposição refletiram os contextos sócio-históricos em que ocorreram, criando contra narrativas ao modelo de progresso predominante em cada período. Além disso, se destaca a importância do museu como espaço de reflexão e transformação, influenciando outras instituições a repensarem suas práticas.
Esta é uma obra científica, voltada para especialistas e acadêmicos na área de design, museologia e história, mas também é relevante para um público interessado no tema e acostumado com leituras mais densas, trazendo uma visão mais profunda sobre o papel do museu e a atuação dos sujeitos envolvidos. Além disso, é um trabalho interessante para os que buscam uma referência de pesquisa documental que constrói as exposições como documento.
Uma característica importante no estilo da tese é a escrita em primeira pessoa. Esta abordagem permite que sejam demonstrados de quais princípios o autor parte, de sua experiência profissional, acadêmica e de seus sentimentos e percepções. Visto que é o autor que irá definir suas escolhas ontológicas e epistemológicas e que sua subjetividade sempre estará presente, se torna prático explicitar este fato desde o início.
A autora nos faz refletir sobre a potência das exposições, sendo estas plataformas de materialização de narrativas e documentos importantes para a pesquisa histórica. Também nos é apresentada a necessidade da análise crítica não somente dos documentos, mas também dos arquivos em que eles se encontram, dando atenção aos processos de seleção e apagamento operacionalizados pelas instituições. A tese representa uma contribuição significativa para o campo da museologia e da história do design, fornecendo percepções importantes sobre a relação entre cultura material, modernização e projetos de Estado-Nação no Brasil. Além disso, estabelece relações entre a teoria e história do design e os estudos da cultura material popular e demonstra como os artefatos subalternos em museus são campo de e para dissonância.
Notas
1. FABRIS, Yasmin. A mão do povo brasileiro: cultura material popular e os projetos modernizadores brasileiros (1969 e 2016). 2021. Tese (Doutorado em Design) – Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2021.
2. Yasmin Fabris é professora no departamento de design e da pós-graduação em design da Universidade Federal do Paraná (UFPR). É doutora em design pela UFPR e em Ciências Sociais pela Universidad de Chile (cotutela), mestra em Tecnologia e Sociedade na linha Mediações e Culturas na Universidade Técnica Federal do Paraná (UTFPR) e graduada em design gráfico e produto pela mesma instituição. Atua como coordenadora de relações internacionais no Laboratorio de Estudios Interdisciplinarios e Investigación Aplicada: Museos y Museologías en el Chile Contemporáneo. ÉPesquisadora do Núcleo de Sociología del Arte y las Prácticas Culturales da Universidad de Chile, é responsável pela linha Museos, Instituciones y Políticas Culturales, e do Núcleo de Artes Visuais (NAVIS), participa do grupo de pesquisa Design e Cultura (UTFPR). Desenvolve pesquisa sobres: design e cultura, cultura popular, cultura material, história do design e memória e patrimônio.
3. Thabata J. B. Pinheiro é graduada em design pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Federal do Paraná, na linha de Teoria e História do Design. É integrante do Grupo de Pesquisa em Teoria, História e Crítica do Design e Atividades Projetuais (UFPR), do Grupo de Estudos Críticos em Design e Sociedade (UFSC) e do Núcleo de Artes Visuais (NAVIS-UFPR). E-mail: thabata.pinheiro24@gmail.com.
4. MYERS, Fred (ed.). The Empire of Things: Regimes of Value and Material Culture. Santa Fe, NM: SAR Press, 2001.
5. MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
6. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo. Travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
7. FOUCAULT, Michel. El juego de Michel Foucault en “Saber y Verdad”. Madrid, Ediciones de la Piqueta, p. 127-162, 1984.
8. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
9. GELL, Alfred. Arte e agência. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
10. MIGNOLO, Walter. La opción de-colonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto y un caso. Tabula Rasa, n. 8, p. 243-281, 2008
11. QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad-racionalidad. In: BONILLO, Heraclio (comp.). Los conquistados. Bogotá: Tercer Mundo Ediciones; FLACSO, 1992, pp. 437-449.
12. GARCIA CANCLINI, Néstor. As Culturas Populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
_______. Ni folklórico ni masivo ¿Qué és lo popular?. Revista Diálogos de la comunicación, v. 17, n.3, p. 6-11, 1987.
13. As diferenciações entre os termos se encontram no campo teórico e político, onde o “decolonial” está ligado à “colonialidade”, ou seja, a compreensão de que o processo de colonização ultrapassa os âmbitos econômico e político, estando presente na existência de povos colonizados mesmo após “o colonialismo” ter se esgotado em seus territórios. Enquanto o descolonial seria a contraposição ao “colonialismo”, já que o termo descolonizacion é utilizado para se referir ao processo histórico de ascensão dos Estados-Nação após terem fim as administrações coloniais. O que muitos autores afirmam é que mesmo com a descolonização, permanece a colonialidade, portanto o uso do termo “decolonialidade”. (SANTOS, 2018)
Referências
FABRIS, Yasmin. A mão do povo brasileiro: cultura material popular e os projetos modernizadores brasileiros (1969 e 2016). 2021. Tese (Doutorado em Design) – Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2021.
SANTOS, Vívian Matias dos. Notas Desobedientes: decolonialidade e a contribuição para a crítica feminista à ciência. Psicologia & Sociedade, v. 30, n. 200112, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/psoc/a/FZ3rGJJ7FX6mVyMHkD3PsnK# Acesso em: 14 maio 2024
Resenha desenvolvida na disciplina Design e Cultura, do PPGDesign/UFPR, ministrada por Ronaldo de Oliveira Corrêa e Lindsay Jemima Cresto em 2024.