volume 4
Esta nova série, lançada mais uma vez no Dia Internacional das Mulheres, apresenta uma breve trajetória e a produção de mulheres designers na primeira metade do século XX, com atuação em vários países europeus e nos EUA. A escolha geográfica está ligada aos materiais utilizados, como o Women in Design: from Aino Aalto to Eva Zeisel, de Charlotte e Clementine Fiell,livro que serviu de referência para as pesquisas desenvolvidas por estudantes do curso de Bacharelado em Design da UTFPR. Em séries anteriores, designers brasileiras e latino-americanas foram temas de pesquisas. Sobre a contribuição de mulheres na História do Design, a designer italiana Astrid Stavro fez o questionamento que nos fazemos ainda hoje:
As mulheres estiveram e estão envolvidas com o design nas suas mais variadas formas: profissionais da área, teóricas, historiadoras, consumidoras (BUCKLEY, 1986), então por que a produção de mulheres parece invisível? Por que algumas áreas do design foram historicamente desvalorizadas (artesanato, têxteis, moda, ilustração infantil) e permanecem assim ainda hoje? Como operam as dicotomias tais como esfera pública e privada, artesanato e indústria, artes decorativas e design funcional e quais suas consequências para os processos de apagamento?
A invisibilização na história do design consiste em um conjunto de estratégias de apagamento da atuação e produção de mulheres: a definição de design adotada, os registros históricos, relacionamentos, maternidade, divisão do trabalho. A definição de design é determinante na exclusão ou inclusão das mulheres, como o design definido em função da produção industrial em larga escala. As teóricas feministas têm defendido que o design que enfatiza apenas uma forma de produção invisibiliza o trabalho das mulheres porque exclui a produção artesanal e em pequena escala. O local de produção também interfere na visibilidade: a esfera doméstica não recebe a mesma valorização da indústria, porque a esfera do trabalho/empresa faz parte de uma lógica capitalista mais explícita, que considera a fábrica ou escritório como o espaço do trabalho profissional remunerado, especializado, enquanto a esfera doméstica é considerada como espaço de reprodução, do cuidado, do trabalho não remunerado, amador ou pouco especializado.
Mulheres também foram excluídas das academias de arte (criadas no século XVIII) por muito tempo, não frequentaram aulas com modelo vivo, um conhecimento fundamental para a pintura histórica e o retrato, pois considerava-se inapropriado observarem corpos despidos. A sociedade burguesa europeia do século XIX estabeleceu classificações do que era uma arte “feminina”, em oposição à “masculina”, colaborando para a criação de estereótipos sobre as capacidades intelectuais associadas aos sexos (SIMIONI, 2007, p.91). Com isso, houve uma crescente separação entre a figura do artista, valorizado pelo intelecto e criação, e o artesão, considerado mais um hábil executor sem grandes dotes intelectuais. As mulheres então estavam aptas “apenas a criarem o que então se convencionou denominar de gêneros “menores”: as miniaturas, as pinturas em porcelana, as pinturas decorativas (vãos, esmaltes etc), as aquarelas, as naturezas-mortas e, finalmente, toda a sorte de artes aplicadas, particularmente as tapeçarias e bordados (SIMIONI, 2010, p.4)”.
As artes aplicadas praticadas por mulheres, chamadas muitas vezes de “artes menores”, não eram consideradas produções artísticas relevantes ou valorizadas. Os trabalhos artísticos desenvolvidos por mulheres restringiam-se às atividades consideradas como passatempo, não remuneradas e realizadas na esfera doméstica. Esses trabalhos geralmente compreendiam técnicas como bordados, crochês e variados trabalhos com agulhas. Com o acesso à formação artística, os trabalhos de criação têxtil remunerados passaram a ser considerados como ocupações honradas para as mulheres (CAMPI, 2010). Ainda assim, nas Exposições Universais de Viena (1873), Filadélfia (1876), Chicago (1893), Paris (1900), as produções das mulheres forma exibidas em pavilhões separados e avaliadas por sua “feminilidade”, não pela qualidade (CAMPI, 2010).
No século XIX, os conselhos voltados às jovens das classes altas era fazer o lar bonito com trabalhos de agulha, pintura e desenho, e vários tipos de trabalhos extravagantes como a prática de estofamento amador. O artesanato era ensinado às mulheres para desenvolver suas habilidades “naturais” de sensibilidade e suavidade. O objetivo era preencher o tempo livre (aquele não dedicado à casa e à família) de modo produtivo e também ensinar as mulheres a julgar a qualidade de trabalhos do mesmo tipo, como o tricô e os trabalhos com agulhas. Tutores eram empregados para ensinar as jovens e muitos livros começaram a ser publicados como conselhos ou guias para desenvolver uma ampla gama de artesanatos (EDWARDS, 2006).
Hackney (2006) argumenta que as mulheres de todas as classes sociais desenvolveram coisas para suas vidas, porém, localizadas no lar, essas atividades permaneceram “nas margens”’, embora fossem centrais na construção de identidade e subjetividade femininas. Os trabalhos desenvolvidos por mulheres, como o trabalho com fios (bordado, tricô, crochê) e têxteis de modo geral têm sido associados ao trabalho artesanal e manual, tratados frequentemente sob um caráter amador. De acordo com Ana Paula Simioni (2010, p.1) “as artes têxteis, e em particular os bordados, parecem ser o caso de objetos “naturalmente atrelados ao fazer feminino”.
Considerada como origem do ensino de design e das propostas modernistas e funcionalistas, a Bauhaus, escola alemã fundada em 1919, estruturou a aprendizagem com base em oficinas: cerâmica, tecelagem, metais, mobiliário, fotografia, etc. A escola defendia que não houvesse distinção de raça nem de sexo, mas o diretor da escola, Walter Gropius, recomendou que a seleção fosse mais rigorosa e que ao ingressarem as mulheres fossem encaminhadas ao ateliê de tecelagem, pois considerava que este era o espaço criativo “natural” para elas. Outra razão era que Gropius e outros mestres da escola acreditavam que as mulheres pudessem comprometer os princípios estéticos e formais da escola, tornando-a excessivamente “ornamental e decorativa”. Gropius considerava um risco aos princípios formais da escola a atuação das mulheres em outras oficinas. O ateliê de tecelagem, desvalorizado na escola, tornou-se majoritariamente composto por mulheres. O ateliê não oferecia certificação, foi por muito tempo desvalorizado, porém tornou-se avançado e um dos mais produtivos e rentáveis devido ao contato com indústrias da época (CAMPI, 2010).
Para designers e arquitetos modernistas, os artigos têxteis e de cerâmica eram consideradas criações menos importantes do que aquelas produzidas industrialmente em larga escala. Günta Stölzl, que coordenou o ateliê por muitos anos, foi responsável por uma extensa produção de tapeçarias com motivos abstratos, que representavam as teorias cromáticas estudadas por vários mestres da Bauhaus, como por exemplo Wassily Kandinsky, tensionando estereótipos de gênero. Anni Albers (1899-1994), vice-coordenadora do ateliê de tecelagem, também produziu várias tapeçarias e obras abstratas, com exposições individuais em grandes museus. Outras estudantes como Grete Stern (1904-1999), estudante do ateliê de fotografia, Margarete Heymann (1899-1990), referência em cerâmicas modernistas; Otti Berger (1898-1944), que estudou e depois coordenou o ateliê de tecelagem e Wera Meyer-Waldeck (1906-1964), estudante do ateliê de carpintaria, construíram carreiras de sucesso posteriormente ao período que estudaram na Bauhaus, mas poucas referências temos sobre elas.
Clara Driscoll (1861-1944) desenvolveu uma longa parceria com a Tiffany Studios, com a criação de inúmeras luminárias em vidro, junto com outras mulheres que atuaram na fábrica. Como outras mulheres com boa condição econômica, recebeu educação formal em escola de artes para mulheres, onde se interessou pelas artes decorativas e aplicadas. Na época da Art Nouveau, a tradicional hierarquia entre artes maiores e artes aplicadas foi questionada, ampliando as possibilidades de atuação para muitas mulheres, como foi o caso de Driscoll. A Tiffany estabeleceu associações e empregou mulheres e empresas lideradas por mulheres, como Candice Wheeler (1827-1923) que fornecia têxteis para a decoração. Wheeler também criou a Sociedade de Arte Decorativa de Nova York, oferecendo oportunidades para outras mulheres atuarem profissionalmente com artes decorativas e têxteis.
Jessie Newberry (1864-1948) também estudou artes decorativas e trabalhou como artista independente e bordadeira. Ao se casar com Francis Newberry, diretor da Escola de Arte de Glasgow, inovou no ensino do bordado, defendendo que objetos cotidianos mereciam bom desenho e boa apresentação. Criou vários artefatos têxteis bordados, como peças de vestuário, almofadas, embora muitos trabalhos sejam creditados ao marido de Jessie.
Lucile Duff-Gordon (1863-1935) tornou-se a primeira designer britânica a alcançar reconhecimento internacional, e inovou o conceito de alta no início do século XX. Sua Maison Lucile, criada em 1910, vestiu a alta classe britânica e francesa. Lucile estava à bordo do Titanic, e seu depoimento sobre a tragédia chamou atenção para seus vestidos com nomes exóticos e eloquentes: “Give me your heart” (me dê o seu coração) e “The Sighing Sound of Lips Unsatisfied” (O som suspirante dos lábios insatisfeitos). Lucile foi a primeira designer de passarela, e suas estratégias de vendas foram inovadoras e perspicazes, mostrando como a moda e a indumentária são importantes para compreender a História do Design.
A designer e ilustradora Ilonka Karasz (1896-1981) contribuiu com a modernização da revista New Yorker, com as várias capas marcantes que misturavam o modernismo das grandes cidades com cores e referências culturais populares. Desenvolveu cerâmicas, papéis de parede e móveis, projetos inspirados nas vanguardas como De Stijl.
“O carro é uma extensão da casa”. Este pensamento motivou o designer e vice presidente da seção de estilo da General Motors, Harley J. Earl, a incluir mulheres designers em seu departamento durante as décadas de 1940 e 1950. Em um comunicado à imprensa em 1957, Earl afirmou que a empresa estava acrescentando um ponto de vista feminino aos produtos da GM, já que após a Primeira Guerra Mundial as mulheres modernas também exerciam grande influência na decisão de compra na família. Earl rapidamente percebeu que a presença de mulheres na GM poderia funcionar como uma boa estratégia de marketing e assim surgiram as Damsels of design (donzelas do design), mulheres responsáveis pelo design dos interiores dos veículos que eram exibidos em grandes feiras de automóveis.
Alguns fatores podem reforçar ou diminuir a invisibilização de mulheres no design, como as parcerias, sejam pelas relações familiares ou pelo casamento. Este é o caso de Pipsan Swanson (1905-1979), filha de Eliel Saarinem, estudou em excelentes escolas e universidades e atuou principalmente com design têxtil, interiores, móveis, vestuário e figurino. Foi uma designer versátil e produtiva, porém ofuscada pelas relações de parentesco. Cabe lembrar que Ray Eames também foi ofuscada pelas produções do marido na mesma época e em áreas de atuação semelhantes.
Nos debates sobre gênero, não são as diferenças sexuais que são acionadas, mas as formas pelas quais elas são representadas, como são nomeadas enquanto características masculinas ou femininas e como se configuram as ideias sobre os espaços de atuação de homens e mulheres na sociedade. Mesmo disfarçada de senso comum ou revestida por uma linguagem considerada científica, a distinção biológica/ sexual “serve para compreender — e justificar — a desigualdade social” (LOURO, 2007, p. 21).
Os estereótipos de gênero são construídos e naturalizados a partir de oposições binárias, que costumam ser acionadas para legitimar desigualdades de gênero no campo do design. Os estereótipos utilizam “algumas características fáceis de compreender e lembrar, amplamente compartilhadas, reduzindo as pessoas ou grupos de pessoas a tais peculiaridades, exagerando-as, simplificando-as e fixando-as como imutáveis” (SANTOS, 2011, p.172). Estereótipos são representações que estabelecem regimes discursivos e de poder.
Conhecer a produção de mulheres designers possibilita compreender narrativas sobre atividades, práticas, conhecimentos e habilidades que foram historicamente desvalorizadas. A articulação entre História do Design & Estudos de Gênero é um caminho possível para discutirmos estratégias que possam conferir maior visibilidade às mulheres no design, valorizando outras narrativas sobre o campo e suas práticas.
Referências
BUCKLEY, Cheryl. Made in patriarchy: Toward a Feminist Analysis of Women and Design. In: Design Issues, vol. 3, n. 2 (out, 1986), pp. 3-14.
CAMPI, Isabel. Diseño e Historia: tempo, lugar y discurso. México: Editorial Designio, 2010.
CRESTO, Lindsay; FRANÇA, Maureen Schaefer. A invisibilidade das mulheres na história do design. Disponível em: <https://teoriadodesign.com/a-invisibilidade-das-mulheres-na-historia-do-design/>. Acesso em: 12/10/22.
EDWARDS, Clive. ‘Home is Where the Art is’: Women, Handicrafts and Home Improvements 1750-1900. Journal of Design History, vol.19, n.1, 2006
HACKNEY, Fiona. ‘Use Your Hands for Happiness’: Home Craft and Make-do-and-Mend in British Women’s Magazines in the 1920s and 1930s. Journal fo Design History, Vol. 19, n. 1, 2006.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
SIMIONI, Ana Paula. Profissão artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: EDUSP, 2007.
JORGE, Aline. Mulheres no design gráfico: uma discussão necessária. Medium. 2017. Disponível em:< https://medium.com/@aline.jorge/mulheres-no-design-gr%C3%A1fico-uma-discuss%C3%A3o-necess%C3%A1ria-9ac1328a2474>
MILLER, Cheryl D. Black Designers: Missing in Action,. Print Magazine, Sept/Oct 1987.
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Azul para meninos e rosa para meninas? O design como tecnologia de gênero.. In: Humberto da Cunha Alves de Souza, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira (org). Caminhos da pesquisa em diversidade sexual e de gênero : olhares in(ter)disciplinares. Curitiba: IBDSEX, 2020. p. 66-79. Disponível em:<http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/redes/valorizacao_diversidade/cartilhas/LIVRO%20-%20LIVRES%20E%20IGUAIS%20-%20PALESTRAS%20%20DO%20CONGRESSO%20LGBTI%2B.pdf>