Texto escrito pelas estudantes Kauane Stoco de Jesus e Letícia Rodrigues Kussek para a disciplina de Teoria e História do Design 2 do Curso de Tecnologia em Design Gráfico sob orientação da Profa. Maureen Schaefer França
1. INTRODUÇÃO
Somos cercados por propagandas pró-capitalismo desde que nascemos. Elas se manifestam de diversas formas: nos programas de televisão, na escola, nas notícias ou até mesmo em anúncios do Instagram. Estes, inclusive, costumam oferecer cursos para nos tornarmos freelancers de “alto nível” e faturarmos muito dinheiro, simplificando a complexidade do trabalho autônomo e omitindo os desafios, os riscos e as dificuldades envolvidas.
A partir disso, o objetivo deste texto é refletir sobre aspectos como liberdade, resiliência e autonomia que costumam ser articulados à atuação de designers freelancers, explorando as interações entre empreendedorismo e precarização que marcam as relações de trabalho nesse contexto.
Liberdade, autonomia e resiliência são ideias amplas, sendo assim, iremos abordá-las de acordo com o discurso neoliberal de empreendedorismo, que costuma utilizá-las como ferramentas de persuasão. Gostaríamos de enfatizar que, dado o espaço limitado deste ensaio, não seremos capazes de abordar o assunto de maneira aprofundada. Portanto, iremos fornecer uma introdução ao tema e destacar algumas questões-chave para reflexão e debate.
Usamos como base a obra ‘Emprecariado’ (2023), do autor Silvio Lorusso. No livro, Lorusso examina criticamente aspectos do mercado de trabalho e a ascensão do trabalho freelance, especialmente no contexto digital. Ele analisa como a ideia de ser seu próprio chefe e a liberdade prometida pelo trabalho autônomo são atravessadas por contradições e desafios enfrentados a serem enfrentados pelos profissionais freelancers.
2. “SÓ DEPENDE DE VOCÊ”: VALORES NEOLIBERAIS E A IDEALIZAÇÃO DO FREELA NO DESIGN
De acordo com o discurso neoliberal, ser um designer freelancer significa abraçar a liberdade em todas as suas formas: liberdade de tempo, de espaço, criativa e financeira. Ter a autonomia de escolher seus próprios horários, trabalhar em casa ou em qualquer lugar que inspire criatividade e possivelmente obter uma renda maior do que aquela limitada pela CLT (Consolidação das Leis de Trabalho).
Nas palavras de Lorusso, Joseph Schumpeter, um dos principais economistas do século XX acreditava que (2023, p. 84):
“os empreendedores eram uma espécie rara que ocupava o topo da pirâmide social por causa de sua valiosa capacidade de inovação. Partindo de premissas semelhantes, o guru da administração Peter Drucker argumentou que, para acelerar a inovação, a sociedade como um todo teria que se tornar empreendedora, eliminando o desestímulo ao progresso que é o emprego permanente”.
A “liberdade de tempo“, em teoria, permitiria que empreendedores se libertassem da rotina monótona de bater ponto e evitassem as intermináveis horas perdidas no trânsito ou no transporte público. Em vez disso, freelancers poderiam desfrutar da liberdade de trabalhar de acordo com seu próprio ritmo, maximizando sua produtividade.
A “liberdade de espaço“, a priori, daria à classe empreendedora a oportunidade de transformar qualquer ambiente em seu escritório, seja no conforto do seu lar ou em uma cafeteria. Freelancers seriam capazes de levar seu escritório completo dentro de uma mochila, encontrando inspiração em diferentes cenários. Além disso, a “liberdade criativa” permitiria que a imaginação fluísse sem restrições, possibilitando dar vida às ideias mais inovadoras e expressivas.
Por fim, a “liberdade financeira” seria finalmente alcançada, quando empreendedores poderiam estabelecer sua própria política de preços, atraindo clientes que valorizam seu talento, recompensando-os generosamente por seu trabalho excepcional.
Empreendedores supostamente transformariam a pressão em motivação, superando adversidades e emergindo ainda mais fortes. Eles abraçariam os obstáculos como oportunidades de crescimento, encontrando soluções inovadoras mesmo diante das situações mais complexas. Com determinação e resiliência, seria possível se adaptar rapidamente às mudanças do mercado, mesmo em períodos de baixa demanda, buscando novas oportunidades e se reinventando constantemente.
Seguindo a lógica, “ser o seu próprio chefe” diz respeito à ideia neoliberal de ter responsabilidade e autodeterminação para se tornar o verdadeiro protagonista de sua jornada profissional. A autonomia de ter controle total sobre as decisões sem interferências hierárquicas permitiria à classe empreendedora explorar sua imaginação de forma ilimitada, criando inovações com audácia e expressando sua identidade de maneira autêntica. Sendo assim, empreendedores poderiam escolher os projetos que mais os inspiram, alinhados com seus interesses, valores e visão pessoal, resultando em um trabalho mais satisfatório e gratificante. Afinal, só dependeria de você.
3. CONTRADIÇÕES DOS VALORES NEOLIBERAIS NA PRÁTICA FREELANCE
O que vivemos hoje vem se constituindo há décadas, em um processo de transformação das relações de trabalho e de como as pessoas se inserem nessa dinâmica. É importante reconhecer que o neoliberalismo é mais do que uma política econômica, ele tem o sentido de aprofundar a mercantilização da vida em todas as esferas possíveis. A ideologia neoliberal se estabeleceu como uma nova racionalidade, afetando não apenas as relações interpessoais, mas também a subjetividade e a vivência cotidiana. No entanto, é importante resgatar as bases materiais que levaram a esse processo e entender em que contexto o neoliberalismo começou a ser constituído e a regular relações de trabalho na contemporaneidade.
Segundo Gonçalves e Cipiniuk (2023, p. 470):
Nos anos 1970, devido a um surto inflacionário, ocorreu mais uma das sucessivas crises do capitalismo e, na época, como forma de sua manutenção e de “solucionar” a crise, o capitalismo articula e põe em cena uma dupla solução: o neoliberalismo e a reestruturação produtiva (apud DIAS, 1998, p. 49).
Essas mudanças visavam aumentar a produtividade, reduzir os custos de produção e tornar as empresas mais competitivas em um contexto de globalização econômica, pois mudanças tecnológicas facilitaram que empresas pudessem descentralizar sua produção. É nesse ambiente que uma nova forma de organização do trabalho foi sendo desenvolvida, na qual a terceirização passou a ser imposta cada vez mais, como afirmam Gonçalves e Cipiniuk (2023, p. 472):
Passou-se de uma atividade meramente repetitiva e mecânica na linha de produção (marca do fordismo/taylorismo) para uma perspectiva de maior envolvimento pessoal. Ou seja, os trabalhadores passaram a atuar de maneira compatível com a prática empreendedora.
Sendo assim, a ideia de que as pessoas não são mais apenas trabalhadoras, mas sim colaboradoras vai ganhando força. “Inovador, criativo, flexível, com iniciativa, sensível, com capacidade de liderança, adaptável, são as características esperadas deste novo sujeito que perversamente passa a ser chamado de colaborador” (GONÇALVES e CIPINIUK, 2023, p. 472). Portanto, o que vivenciamos atualmente é resultado de um processo que decorreu do crescimento da terceirização, flexibilização, informalidade e precarização ao longo das décadas desde a ascensão da lógica neoliberal. Essas tendências se ampliaram significativamente devido às intensas modificações em certas tecnologias, especialmente na comunicação.
A promessa neoliberal de liberdade é tentadora, porém ela desmancha rapidamente com qualquer contato com a realidade. “Liberdade de tempo” é inviável, porque além de suas próprias necessidades, freelancers ainda terão que cumprir demandas e prazos, marcar reuniões e participar delas. Além disso, insegurança financeira, associada a contratos de curto prazo, projetos pontuais e oscilações na demanda, muitas vezes impede freelancers de tirarem férias, os forçando a trabalhar em finais de semana e feriados por conta da instabilidade no longo prazo.
A sobrecarga de trabalho também é uma preocupação relevante nesse contexto. A ausência de uma separação física entre o espaço de trabalho e o ambiente doméstico pode levar a uma expectativa de disponibilidade constante, resultando em jornadas de trabalho prolongadas e dificuldade em estabelecer limites saudáveis. A pressão para estar sempre conectado e responder prontamente a solicitações de clientes pode levar ao esgotamento e à falta de tempo para atividades pessoais e de lazer, afetando a qualidade de vida e o bem-estar dos trabalhadores.
“Liberdade de espaço” depende muito de onde a pessoa freelancer mora, além do fato de que fenômenos como inflação, custo de vida e preços de aluguel elevados podem não só inviabilizar a locação de um escritório ou espaço de coworking, mas também impedir trabalhadores de improvisarem um escritório em casa, pois a tendência é ter apartamentos cada vez menores e mais comprimidos.
A suposta “liberdade financeira” é a mais irreal, em primeiro lugar, penetrar num nicho não é uma tarefa imediata e achar clientes que “te valorizem” é muito mais complicado e depende de muitos fatores além de “força de vontade”. Além disso, segundo um estudo da Freelancer Map, 76% dos clientes dos freelancers vêm de conexões pessoais e apenas 34% dos freelancers que trabalham com mídia e design gráfico estão satisfeitos com sua renda.
Ademais, se o freelancer ganhasse mais e trabalhasse menos, por que precisaria de resiliência? Por mais que num primeiro momento, este pareça o valor “mais transparente”, ele também serve para mascarar condições de trabalho ruins: não é acúmulo de funções, é “resiliência”, não é trabalho mal pago, é “resiliência”. Esse valor se manifesta em slogans motivacionais como “trabalhe enquanto eles dormem”, “joguem-me aos lobos e voltarei liderando a alcateia” ou “você e o Elon Musk tem as mesmas 24 horas”. Nessa perspectiva, Eva Illouz e Yaara Alaluf (2020) enfatizam que a resiliência, um conceito filiado à ideologia capitalista, tem sido empregado para encobrir as intempéries do neoliberalismo, como se as dificuldades devessem ser resolvidas pelo esforço individual, escamoteando, desse modo, seus aspectos estruturais.
Seja seu próprio chefe, contador, faxineiro, RH, administrador, social media e capataz, o que os ideólogos do neoliberalismo chamam de autonomia muitas vezes é acúmulo de funções. O “empreendedor” pode até não ter que lidar com pitacos do chefe, reuniões pedantes com os colegas e todas as burocracias, mas ele terá que desempenhar, por vezes, diversas funções de um escritório “completo”.
Lorusso (2023, p. 85) dedica um capítulo inteiro à pressão por otimismo e positividade:
“Fake it till you make it” é uma expressão que incorpora a crise existencial do emprecariado. Em termos de psicologia popular, o slogan sugere fingir ser feliz até realmente ser feliz. Os indivíduos recorrem a um otimismo ostensivo para se apresentar como autônomos aos outros (e a si mesmos), esperando se tornarem exatamente isso. Embora admitam ser os mestres de seus próprios destinos, a responsabilidade por seus fracassos recai apenas sobre eles mesmos.
A frase “só depende de você” reforça a meritocracia ao promover a ideia de que, se uma pessoa trabalhar muito, se dedicar e se esforçar o suficiente, ela poderá superar quaisquer obstáculos e alcançar qualquer objetivo. Essa narrativa coloca todo o peso do sucesso ou fracasso exclusivamente nas ações e esforços individuais. A realidade é que existem outros fatores além do esforço individual que afetam o sucesso profissional, como o contexto econômico, a concorrência no mercado, as demandas por serviço, o acesso a redes de contatos, machismo, lgbtfobia, racismo, lipofobia etc.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do texto analisamos as promessas do discurso neoliberal e as contradições encontradas na prática do trabalho freelance. É evidente como as ideias de liberdade, resiliência e autonomia podem ser ilusórias, uma vez que a realidade do trabalho está distante das promessas propagadas. Freelancers enfrentam riscos e restrições em seu dia a dia profissional, exigindo um olhar mais crítico e consciente sobre esse contexto.
Por ser um assunto muito complexo, tivemos o desafio de filtrar os tópicos a serem abordados, pois havia uma infinidade de perspectivas e questões relevantes a considerar. Ressaltamos que este ensaio se baseou em observações gerais e reconhecemos que existem nuances e perspectivas adicionais que não foram totalmente exploradas neste trabalho. Portanto, temos como sugestão expandir essa discussão por meio de estudos futuros e análises mais aprofundadas.
REFERÊNCIAS
CAMPAÑA, Natalia. Freelancer Study 2023. Freelancer Map, 2023. Disponível em:<https://www.freelancermap.com/market-study>. Acesso em: 19 de jun. 2023.
GONÇALVES, Luciana; CIPINIUK, Albert. O mito do empreendedorismo e a prática do design. Arcos Design, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, pp. 466-482, jan./2023. Disponível em: https://www.e- publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign.
ILLOUZ, Eva; ALALUF, Yaara. O capitalismo emocional. In: História das Emoções – 3. Do final do século XI até hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.
LORUSSO, Silvio. Emprecariado: todo mundo é empreendedor, ninguém está a salvo. / Silvio Lorusso; [tradução Eduardo Souza]. – 1º ed. – São Paulo: Clube do Livro do Design, 2023. 288 pp.
Microsoft Start. Preço do aluguel residencial acumula alta de 16,52% em 12 meses; veja aumentos nas capitais (2023). Disponível em: <https://www.msn.com/pt- br/noticias/brasil/pre%C3%A7o-do-aluguel-residencial-acumula-alta-de-1652-em-12-meses- veja-aumentos-nas-capitais/ar-AA1cBNXi>. Acesso em: 19 de jun. 2023.
